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1. – INTRODUÇÃO | Verbatim 2. – O VELÓRIO DO TÓ GULA | A. Raposo |
EPISÓDIO 2. O VELÓRIO DO TÓ GULA A. Raposo (Contado pelo consagrado detective Tempicos e grafado pelo seu criador A. Raposo)
O falecido Tó Gula
cresceu e fez-se homem entre os bares “Califórnia” e “Texas Bar” baluartes
educadores da juventude, aquela que não conhecera a Universidade. Aí fizera
sala após os jogos do seu clube − União da Madragoa – bebendo umas
cervejolas na boa companhia das senhoras que ali paravam na esperança da
chegada ao Tejo de uma esquadra Americana. Tó Gula passava ali belos serões
que muitas vezes se animavam em arraiais de forte pancadaria entre os
naturais e os camones bêbados. De facto fora em vida guarda-redes do União,
no verão, à noite ainda fazia uma perninha a cantar no bairro alto, numa casa
de fados com petiscos e tinto do Cartaxo. Por isso aos domingos de jogo quase
adormecia entre os postes, na Tapadinha, no campo cedido pelo Atlético Clube
de Portugal do qual o União era filial. Tó Gula era
bem-apessoado – dono de uma bela cabeleira preta que ele cobria de
brilhantina e forçava o cabelo à frente numa poupinha que deixava de quatro
as miúdas do bairro, era a moda da época. As senhoras mais íntimas dos bares
chamavam-no de “o meu Tónecas” e ele gostava. Porém a vida é
curta e para Tó Gula ainda foi mais. Aos 25 anos já jazia no seu caixão, na
sala-velório da Igreja de S. Paulo. Barbaramente assassinado, na noite
anterior, por autor desconhecido. A sala era
pequena e tinha sido roubada ao espaço da sacristia por um padreca
esperto, conhecido por Novena, que tinha ali uma fonte de rendimento segura
que dividia com o sacristão. À roda do
caixão duas filas de bancos corridos onde se alinhava apertadinho o pessoal. O choro
ouvia-se na rua pois entre irmãos e irmãs Tó Gula
tinha sete. Além da
família juntava o pessoal do Clube Futebol e da Casa de Fados. Uma boa parte
já ficava na rua, o que permitia fumar um cigarrito e até contar umas
anedotas, muito tradicional nos velórios. Uma moça
roliça e de fartos seios que vendia esticadores para o colarinho, pentes e
outras minudências à porta da Ribeira chorava como uma vitela desmamada, pois
tinha pelo Tó uma paixão assolapada. A viúva do
Tinhoso contribuía com um chorinho manso, ao lado do Presidente do União, o
Senhor Euclides, que insistia em meter no caixão, as chuteiras, a camisola e
a bola do falecido. O pessoal do Fado tinha outro projecto.
Uma coroa em forma de guitarra, salpicada de papoilas, insistia em meter no féretro
o Sr. Quim Zé da casa de fados. A algazarra começou e ultrapassou os choros. Às tantas a
coisa começou a ferver exactamente quando uma
delegação de senhoras dos bares Texas e Califórnia chegavam de vela em riste
e cantando o padre-nosso. No meio da
confusão o amigo João da Bica, caindo de bêbado, chegou-se ao caixão, abraçou
o morto e começou a chorar alto e bom som. Ninguém conseguia retirá-lo de
cena. O abraço ao
falecido foi de tal forma forte que Tó Gula ficou despenteado e meio saliente
do féretro, como se estivesse a espreitar o pessoal sentado à sua volta. Dona Isaura
não aguentou a pressão e deu-lhe o badagaio e tombou
no chão frio da sala. O pessoal começou a arrastar a Dona Isaura e o Quim
Costa, seu homem, não gostou da brincadeira. Gritou com o vozeirão de
vendedor de peixe: – Alto e pára o baile! A minha Isaura não vai assim de rastos para
a rua. Chamem a Polícia. Chamem o guarda-noturno. Chamem o
caraças! O Padre Novena
que pensava dar missa de corpo presente, não aguentou mais a situação e disse
para quem o quis ouvir: – Deus me
perdoe, mas ninguém mexe no morto nem na dona Isaura, vai tudo para a rua e puta que os pariu! Ai valha-me Deus! Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 19 de Outubro de 2025 O CASO (sério) DA
RUA DAS TRINAS, Edições Fora da Lei, Ano de 2018 |
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© DANIEL FALCÃO |
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