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22 de Março de 1957. É
publicado, na revista “Flama”, o 1º número da Secção “O Gosto do Mistério…”,
orientada por Jartur – curiosamente, por lapso
tipográfico, identificado como “Mr. Dartur”. Domingos Cabral, com 15 anos completados
recentemente, responde ao problema naquela inserido
– “O Táxi Misterioso”, transformando, assim, em “casamento” o “namoro” que à
modalidade vinha fazendo há algum tempo, através do contacto com a Secção do
“Mundo de Aventuras”, de que era leitor há alguns anos. Sabendo, por isso, que era habitual o uso de
pseudónimo, e perante a dificuldade que sentiu na escolha, rápida, de um,
acabou, por associação, por perfilhar o “Inspector
Aranha”. É que, naquele problema, o investigador (Marcos Dias), concebido
pelo Autor (Jartur), após resolver o caso,
dirige-se para o “Clube do Aranhiço”. Escolha pouco feliz, de facto, já que
ninguém inicia a construção de um edifício pelo telhado e o principiante
começava, nada modestamente, por se designar “Inspector”…
De qualquer forma, iniciou-se, assim, um longo caminho… In Mundo dos
Passatempos, 1 de Setembro de 2007 Correio Policial, 11 de Junho de 2021 |
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA
POLICIÁRIA PORTUGUESA por DOMINGOS CABRAL (do livro com o mesmo título, a
editar) 39 CICLO REINALDO FERREIRA “REPÓRTER
X” CONCURSO DOS CONTOS
MISTERIOSOS Nº 44 A VIRGEM DO MANTO AZUL Coava-se, atravez das persianas, uma
luz suave e doce que vinha afagar carinhosamente o rosto pálido da doente. Em
torno do leito, encimado por um docel de veludo,
três raparigas ouviam, singularmente comovidas, a narrativa da sua colega do
colégio, narrativa interrompida, de quando em quando,
por uns frouxos acessos de tosse-breve, seca, sacudida. E era simples, afinal, aquela história que tanto
impressionava a sensibilidade das três jovens! Um caso vulgar de amor, do
amor que envolve, na sua teia entretecida pelos anjos, todo o coração que
desabrocha aos primeiros alvores da mocidade. Fransina, mignone, uns lindos olhos garços a
despedirem folgôres, a doente ia dizendo num tom de
voz caricioso: – Amei-o muito! Se vissem como era esbelto, como
sabia domar o seu cavalo fogoso, quando, ao fim da tarde vinha passar sob a
minha janela e estacava, de repente, sofreando os ímpetos do animal só para
me fazer um cumprimento em regra! Ah! Eu sentia bem que ele, o Alfredo,
correspondia ao meu afecto! Um dia, porém, esqueceu lamentavelmente quanto
devia ao meu carinho, quanto devia à sua própria condição. Era o meu
aniversário. Completava 18 anos e meu pai, que tinha por mim uma santa e
terníssima afeição, presenteara-me com um lindo vestido azul – que já fazia o
meu encanto na montra de Matos & Serpa Pinto. Nessa mesma noite meu pai, que quiz ser gentil em extremo, deu um baile em minha honra.
E que torturas passei, de quantos recursos me servi para o levar a convidar
também o Alfredo! Enfim, consegui realizar aquela, para mim,
suprema aspiração. Quando o meu noivo entrou na sala – que eu já o
considerava meu noivo! – estava eu conversando com a
Mariana, aquela interessante menina que dias antes chegára
da Amadora. Com o Alfredo vinham também os seus dilectos amigos Luiz, Reinaldo e Carlos; e todos eles, ao
vêrem-me, tiveram palavras de caloroso entusiasmo
para o meu vestido: – Parece a Virgem das Dôres!
disse o Reinaldo beijando-me as pontas dos dedos. – É uma oleografia, uma deliciosa oleografia reproduzindo
a mais deliciosa tela ingleza! acrescentou
galanteador o Carlos. – Só desejaria que a minha noiva tivesse os
mesmos encantos! murmurou, ligeiramente despeitado,
o Luiz. Quanto ao Alfredo limitou-se a estender-me a sua
mão enluvada, que mal apertou a minha. Estranhei-o. E essa estranheza persistiu durante
a noite, porque teimava em se afastar de mim, apenas me tirando uma só vez
para dançar. Só o Luiz foi gentil, aproveitando todos os
momentos para entabular conversa e para me repetir que desejaria assim
galante a sua noiva! Essa insistência, tornou-se-me
até certo ponto, suspeita. Havia nas suas palavras um certo azedume que eu
não sabia defenir; de resto, a noiva de Luiz era
uma linda rapariga, filha dum coronel reformado e que passava justamente por
ser o que se chama um coração d’ouro. O baile decorria animado incidindo sobre mim,
naturalmente, todas as atenções. Pelas três horas da manhã foi servida a ceia.
Passamos para a sala próxima, ficando junto de mim o Alfredo, o Luiz e os
seus dois amigos. O Alfredo apenas trocou comigo duas palavras,
durante a ceia. E essas foram de recriminação… pelo meu vestido azul! Percebi que tinha ciúmes… do pobre vestido, que
merecera a admiração de todos. Então quis tranquilisá-lo: – Descança. Vou
oferecê-lo á Virgem. Ela fará um manto, um lindo manto azul que há-de cobri-la em festas de gala. Descança! Nesse momento, porém, a luz profusa da sala
extinguiu-se subitamente. Uma avaria mais! Pediram-se velas. Quando emfim
a sala se iluminou de novo, reparei que o meu vestido tinha uma mancha
enorme, de vinho do Porto, que alastrava assustadoramente! Terminara a ceia. O Alfredo, o Luiz, o Reinaldo e
o Carlos afastaram-se para o salão de baile. Apenas os dois últimos
lamentaram o incidente. Fiquei impressionadíssima. Pois quê? O Alfredo
tivera coragem de se vingar assim? Como poderia eu, agora, oferecer o vestido
para um manto da Virgem! Não. Nunca mais lhe falo! Mentiu, mentiu naquela
carta que no dia seguinte me enviou a protestar-me a sua inocência. Foi ele
que manchou o meu vestido. – Enganas-te! Disse então uma das amigas que
ouvia atenta e comovidamente a narrativa ingénua. Não deves lançar as culpas
ao teu noivo. Pensando bem, o único dos quatro amigos que podia ter manchado
o vestido era… Quem manchou o vestido azul foi… * * * NOTA: Foi mantida a grafia da época (1927) ############### GENTIL MARQUES FALANDO
DE REINALDO FERREIRA “RAZÓES QUE A
RAZÃO NÃO ENTENDE” “Já se tornou tradicional, por assim dizer, esta
frase poética (e profética) de Fernando Pessoa, que se ajusta perfeitamente (adequadamente)
ao caso dele próprio - e, entre muitos outros, também ao caso de Reinaldo
Ferreira, o "Repórter X”. Comecemos por este último - tanto mais que se
trata de uma evocação comemorativa do 44.° aniversário
da sua desencarnação da vida terrena, acontecida precisamente em 4 de Outubro
de 1935. Quem foi Reinaldo Ferreira? Bem gostaria de escrever o estudo que a sua
memória merece e que (incompreensivelmente) ainda não foi feito (pelo menos,
ainda não publicado). Mas o espaço desta crónica é espantosamente curto
para tal efeito - e, assim, embora o tenha conhecido (e mesmo convivido com
ele, nos últimos meses de vida, no seu reduto do Café "Chave
d'Ouro"- como aliás já referi na crónica anterior) prefiro dar aqui o
seu retrato e a sua biografia, em síntese, através dos depoimentos aqueles
que o conheceram melhor do que eu. E um deles foi, sem dúvida o seu grande
companheiro de sonhos, Mário Domingues, cuja ausência pesa já também na minha
saudade. Pois Mário Domingues descreve-o assim, no
primeiro encontro que teve com o jovem Reinaldo - eram ambos então alunos do
"Colégio Francês". Reinaldo de Azevedo e Silva Ferreira... o Reinaldo... “um garotelho de
olhos azuis, face redonda e sorridente, grande colarinho à mamã, de sob o
qual pendia um laçarote vistoso, enorme”. E ficámos a saber também como ele se mostrava
frágil e doente, na sua infância: "O pobre Reinaldo ia e vinha da escola,
acompanhado sempre pela mãe, que nunca o abandonava, a mãe que estudava as
lições para lhas explicar e, se o temporal rugia, se apresentava no átrio do
colégio, à tarde, com um volumoso embrulho de galochas e "cache-cols" de lã, a fim de o "empacotar" de
forma que nem a humidade agravasse a bronquite nem a chuva lhe provocasse a
asma de que sofria horrivelmente". Aliás, Mário Domingues deixou-nos esta imagem
expressiva do jovenzito Reinaldo de Azevedo e Silva Ferreira: "... franzino,
débil, era um foco de doenças que a mais ligeira ponta de ar prostrava ao
leito, a arder em febre e embrulhado em lãs: Quis o destino – o que é o destino senão a
vontade de Deus? – que eu tivesse frequentado
também, muitos anos depois, o velho
"Colégio Francês", então já transformado em "Colégio
Académico" - como hoje, aliás, ainda se intitula, através de todas as
renovações que o têm modernizado. Foi aí que tirei o meu sétimo ano (tirara os
outros seis no Liceu Nacional João de Deus, em Faro) e tive por companheiros
de turma dois extraordinários estudantes que muito viriam a dar que faiar. Um
chamava-se Jorge Pereira Jardim, e já tinha a paixão pelo escutismo e pela
aventura. O outro, António Champalimaud - já era perito em exercícios de
matemática. Pois, agora, lembrando-me desse Passado já tão
distante e ainda tão recente - pergunto-me a mim próprio: porque não fazer um
levantamento dos tempos do Reinaldo Ferreira e do Mário Domingues no velho,
velhinho, velhíssimo "Colégio Francês", em 1911, dirigido então
pelo Sr. Alfredo da Costa e Silva, "pequenino, nervoso, narinas sempre
frementes de uma impaciência inexplicável"? Muita coisa, decerto, teríamos que aprender (e
que aprender!) acerca da génese da carreira destes dois consagrados vultos
das letras portuguesas. Mas, enfim, enquanto esperamos que alguém realize
"o milagre" - voltemos ao Reinaldo Ferreira, visto pelos outros que
conviveram de perto com ele... Adelino Mendes – nome grande do nosso jornalismo,
desenhou-o deste modo, na altura da sua entrada para a redacção
de "A Capital", levado pela mão do Mestre Jornalista Hermano Neves
(pai do Dr. Mário Neves, antigo Embaixador de Portugal em Moscovo e actual Secretário de Estado da Emigração). "Um moço franzino, irrequieto, vivíssimo,
com uns olhos muito azuis a irradiar chispas de inteligência, uma cabeleira
quase ruiva, em riste...!” E, mais adiante, no seu depoimento inesquecível,
Adelino Mendes comentava, com a autoridade que tinha e todos lhe reconheciam:
"Ele foi um Mestre tão original e tão fecundo que se tivesse vivido
noutras latitudes, bem pode ser que lhe houvessem saído a fortuna e a glória
de um Wallace ou de Leblanc". E outro querido e saudoso amigo, Ferreira de
Castro, também corroborou na mesma ideia - ele que o conheceu bem na
intimidade: "Foi a vida de Reinaldo uma das mais
trágicas e das mais belas e, sem dúvida, a mais rocambolesca e agitada das
que têm existido no jornalismo português." E acrescentava, com a grande força da Verdade:
"Poucos no Mundo terão escrito tanto, se alguém escreveu nas condições
precárias, na confusão, no tumulto, no movimento em que Reinaldo
escrevia..." E, mais adiante, acentuando bem, sublinhava:
"Na própria odisseia dos seus últimos anos, nas constantes estadias que
era obrigado a fazer nos paraísos artificiais, havia algo dessa fatalidade
romântica, dessa beleza negra, que marcava, como um signo de arte, os
boémios, os poetas, os visionários de outrora". Eis um dos pontos onde eu pretendia chegar com
esta simples croniqueta: a estranha (e bizarra)
contradição que a própria Vida nos oferece. Por exemplo - este moço
extraordinário, chamado Reinaldo Ferreira, fadado desde o início, segundo
parecia, para uma carreira triunfal e que, apesar disso, foi arrebatado
brutalmente à vida terrena pela necessidade indispensável dos paraísos
artificiais... De facto, "razões que a razão não entende.”
Mas, por falta de espaço, a isso terei de voltar, se me permitem, ainda na
próxima crónica de "DOMINGO". (Texto de 1979) (Continua)
Fontes: Secção
Correio Policial, 11 de Junho de 2021 | Domingos Cabral Blogue Repórter de
Ocasião, 15 de Julho de 2025 |
Luís Rodrigues |
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© DANIEL FALCÃO |
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