Autor Data 27 de Fevereiro de 2005 Secção Policiário [711] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 6 Publicação Público |
UM CASO INSÓLITO Rip Kirby Evaristo Relvas era um
indivíduo enfezado, não teria mais de 1,55m de estatura e a sua largura de
ombros dificilmente chegava aos 35cm. O peito em forma de quilha fazia
lembrar o peito das galinhas. Talvez por isso, não chegou a cumprir o serviço
militar, muito embora, no tempo em que para isso ele tinha idade, terem sido
raros aqueles que escaparam de serem considerados aptos para irem bater com
os costados em qualquer uma das nossas colónias de então onde havia guerra. Não obstante os seus fracos
atributos físicos, o Evaristo gozava de grande êxito entre as mulheres o que
desde logo fazia com que nós, os que com ele se davam mais intimamente,
evitássemos a sua companhia em determinadas ocasiões para não sermos
relegados para segundo plano. Em 1970, ou teria sido em
1972, já não me lembro bem, tinha ele então 30 anos, o pai faleceu e
deixou-lhe dois ou três viveiros de amêijoas e um pequeno negócio de marisco
sem grandes pretensões. Durante alguns anos, nas
mãos dele, o negócio estagnou sem aparentar progresso algum – nem ele, um
tipo pouco afoito para os negócios, era pessoa para grandes voos. Em 1990,
mais coisa menos coisa, quase que de um dia para o outro, Evaristo Relvas
viu-se alcandorado à categoria de grande importador e exportador de mariscos. Ninguém sabia como ele
tinha conseguido tal êxito nos negócios. Várias foram as hipóteses então
aventadas. Uns diziam que ele havia sido contemplado com um chorudo prémio da lotaria ou totoloto. Outros, por certo
os mais mal-intencionados, não tinham dúvidas em afirmar que aquele
progresso, tão grande e súbito, mais não era que o fruto do tráfico de droga. Se uns ou outros tinham
razão, não sei, pois a única coisa de que tenho a certeza é que as modestas
instalações onde havia nascido a pequena empresa que o pai lhe havia deixado
por herança foram abandonadas e o centro nevrálgico dos negócios do Evaristo
foi transferido para um moderno edifício onde tudo era sumptuoso e onde ele
atendia os seus clientes, que, para chegarem até ele, tinham que, antes,
passar por uma eficiente e decorativa secretária, que aquilatava a importância
do assunto que cada um dos eventuais visitantes pretendia tratar. Diziam as línguas viperinas
que as funções da secretária por vezes eram bastante mais íntimas do que
aquelas atrás referidas, o que já por diversas vezes provocara alguns atritos
violentos entre o marido e o patrão dela. Uma manhã, cerca de dois
anos após o início da sua nova situação económica, a polícia foi chamada ao
escritório de Evaristo Relvas. A secretária havia-o encontrado morto no
gabinete. Faltavam poucos minutos
para as 12h00 quando o inspector Eduardo Trindade
ali chegou acompanhado pelo sargento Silveira, sendo ambos recebidos por
Etelvina Fernandes, a secretária, que os pôs ao corrente do que sabia: – O patrão tinha chegado ao
escritório poucos minutos depois das 9h00. Vinha acompanhado pelo filho e
ambos entraram imediatamente para o gabinete do Evaristo. Armando Relvas
voltou a sair às 9h15 e parecia muito zangado (as discussões entre pai e
filho eram muito frequentes). Até ao momento ainda não tinha regressado. Às
9h20 entrou Ernesto Fernandes. Vinha tratar da venda de umas centenas de
quilos de conquilhas que havia apanhado na noite anterior e tentar receber
uma factura referente a umas amêijoas que estavam
por pagar havia mais de um mês, e cuja demora no pagamento já havia provocado
algumas disputas verbais entre os dois. Pelo jeito, naquele dia, o Ernesto
alcançara o seu objectivo, pois ao sair, 20 minutos
mais tarde, vinha bastante risonho e mostrara-lhe um cheque, dizendo: “Já cá
canta, não era sem tempo.” – Às 11h30 entrou Manuel
Mateus, um operário que o Evaristo mandara chamar para lhe comunicar a sua
decisão de o despedir devido ao facto de, no seu serviço, ter actuado com negligência de que resultaram algumas
centenas de contos de prejuízos. Mas não demorou nem um minuto, saiu correndo
e levava no rosto uma expressão bastante alterada. Eram 11h45 quando entrei
no gabinete para levar um café ao patrão, como é costume fazer todos os dias,
e fui encontrá-lo morto. Eduardo Trindade e o seu
ajudante entraram no gabinete. Era uma sala ampla aparentemente quadrada,
talvez 10mx10m. O corpo de Evaristo Relvas encontrava-se caído no solo de
bruços, junto de uma janela no lado direito da sala. A cabeça, virada para a
direita, deixava ver a cavidade do olho desse lado que havia sido vazado.
Tinha sido por ali que a morte entrara, deixando um ferimento de muito mau aspecto. A mão direita estava pousada sobre uma pequena
pistola e espalhadas pelo chão havia diversas cápsulas de bala. O gabinete apresentava-se
recheado de móveis caros, mas que não condiziam uns com os outros, revelando
por isso um mau gosto gritante. No entanto, o que mais chamou a atenção do inspector foi uma espécie de vitrina com cerca de um
metro de altura colocada no lado esquerdo da sala, mesmo em frente ao lugar
onde se encontrava o cadáver. Verticalmente colocada sobre esta vitrina
estava uma placa quadrada, 80cmx80cm, de madeira prensada, que tinha colado
no centro um alvo que apresentava algumas perfurações, o que também acontecia
fora do perímetro do alvo, em muito maior quantidade. Ladeando esta placa,
encontravam-se duas estatuetas de bronze maciço que representavam figuras
míticas seminuas da antiga Grécia. A propósito destas duas
estatuetas apetece-me relatar um curioso diálogo travado entre o Silveira e o
Inspector. Andava o sargento cirandando pela sala
e, parando junto da vitrina, entreteve-se a examinar as duas figuras quando,
apontando para a sua direita, exclamou: – Os tipos que fizeram
estes bonecos colocaram dois umbigos neste! – Homem, não seja parvo,
deixe-se de tolices e faça qualquer coisa de útil. Há tanto tempo que anda
nisto e, no entanto, parece que continua lá nas brenhas da serra onde nasceu.
Pensa que eu tenho tempo para brincadeiras? – respondeu-lhe
o inspector mal-humorado. E continuou como se
estivesse pensando em voz alta: – O ferimento não se mostra
chamuscado nem existem resíduos de pólvora ao seu redor. Foi neste momento que
chegou o médico-legista, que, após um exame relativamente rápido, declarou de
forma lacónica: – Morte instantânea, que terá ocorrido há
mais de uma hora e menos de duas. A bala entrou pelo olho direito e alojou-se
no cérebro. Mais informações só depois da autópsia. Agora tenho que me ir
embora, são 12h30 e tenho a minha mulher à espera para almoçar. Aguardou um pouco mais para
assistir à remoção do corpo e saiu. Sempre acompanhado por
Silveira, o inspector saiu do gabinete e
dirigindo-se a Etelvina Fernandes – a sua mesa de trabalho estava colocada a
pouco mais de dois metros da porta onde ocorrera a tragédia, de modo que quem
entrava ou saía tinha que passar por ela –, perguntou-lhe se tinha estado
sempre ali e se não tinha escutado o tiro. – Não senhor, não saí do
meu lugar e quanto ao tiro não ouvi porque a sala se encontra insonorizada.
Além disso, mesmo que tivesse escutado o tiro pensaria que era o senhor
Evaristo a treinar-se. – O Evaristo a treinar-se?
Conte lá isso… – Há umas semanas atrás, o
senhor Evaristo disse-me que ia comprar uma arma, pois não se podia andar
descansado na rua e há coisa de uma semana apareceu aí com uma pistola. Para
se treinar, mandou fazer o alvo que tem no gabinete, mas eu penso que ele não
progrediu nada. Julgo mesmo que ele não sabia lidar muito bem com a arma,
pois às vezes pedia a minha opinião. Chegou mesmo a dizer que nunca tinha
pegado num objecto daqueles. Eduardo Trindade afastou-se
um pouco com o sargento, recomendando-lhe que fosse recolher os depoimentos
dos indivíduos que haviam estado no gabinete de Evaristo Relvas. Algumas
horas mais tarde, o inspector lia o relatório que o
sargento Silveira lhe apresentara. Manuel Mateus declarou que
havia sido chamado ao escritório pelo patrão, mas que mal entrou a porta o
viu estendido no chão. Aquele buraco horrível na cabeça agoniara-o de tal
maneira que saiu correndo. Jurava que não havia sido ele quem matara o
patrão. Armando Relvas, filho de
Evaristo, fez as suas declarações cerca das 13h30 enquanto almoçava num
restaurante um pouco afastado e onde era cliente habitual. Afirmou que havia
chegado à empresa com o pai, tendo saído pouco depois para tratar de um
assunto de que o seu progenitor o havia encarregado. Saíra um pouco zangado,
pois naquele dia não estava interessado em afastar-se para muito longe do seu
local de trabalho. Regressara há poucos minutos e ainda não voltara a falar
com o pai. Mostrara-se curioso por aquele interrogatório, mas o sargento nada
lhe disse. Recomendou-lhe apenas que fosse para casa. Ernesto Fernandes foi
abordado quando tomava uma bica, cerca das 14h30, num café perto de sua casa.
Quando o sargento se identificou, perguntou-lhe se já sabiam quem tinha
assassinado o maroto do Evaristo. Tinha ido lá para tratar de negócios.
Quando isso acontecia, quase sempre saía de lá chateado porque o outro era
muito lampeiro a exigir pontualidade mas estava-se nas tintas quando esta lhe
era exigida. Naquele dia não tivera muita razão de queixa pois o Evaristo
finalmente pagara-lhe a factura que tinha para
receber, havia mais de um mês. Fora logo ao banco depositar o cheque e depois
foi procurar vender umas conquilhas que tinha apanhado, uma vez que o
Evaristo as não quisera comprar. Havia sido a vingança por se ver obrigado a
pagar a factura atrasada. Tinha destas coisas, o
malandro. Quando terminou o negócio, foi almoçar com a mulher num restaurante
perto de casa e agora estava ali fazendo horas para ir para a lida. Eduardo Trindade obteve
outras informações, de entre as quais destaco as seguintes: a pistola
encontrada junto do corpo do Evaristo era mesmo dele e a bala que lhe foi
extraída da cabeça, apesar de muito danificada, não havia dúvida que fora
disparada por essa mesma arma, onde não foram encontradas impressões digitais
além das suas. Estes factos aconteceram há
já alguns anos, mas embora eu me lembre de tudo isto pormenorizadamente, não
consigo recordar-me de qual foi o seu desfecho. Será que os meus amigos,
juntando todos estes dados, são capazes de reavivar a minha memória? Agradeço que os
interessados em me ajudar elaborem um relatório o mais completo possível. A propósito, o Ernesto
Fernandes era casado com a secretária do Evaristo Relvas. A todos desde já os meus
agradecimentos pela trabalheira. |
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© DANIEL FALCÃO |
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