Autor Data 21 de Março de 2004 Secção Policiário [662] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2003/2004 Prova nº 7 Publicação Público |
CRIME NO ESCRITÓRIO Paulo A Primavera ia chuvosa
naquela vila beiroa, encravada na Serra da Estrela, naquele ano de 1985.
Ainda na véspera, dia 22, chovera com alguma intensidade. Faltava um mês para
começar o Verão, mas ninguém o diria, se olhasse para o céu cinzento. Alberto Videira é que já
não poderia efectuar tais conjecturas.
Recostado para trás na cadeira de braços, por detrás da secretária, tinha um
orifício na testa, de onde escorrera o sangue que lhe manchava a cara e parte
do peito, havendo ainda uma mancha de líquido vermelho no chão, junto do
corpo. O compartimento onde se
encontrava o corpo era o seu escritório de proprietário da fábrica de confecções Lanux. Ficava num
dos dois edifícios do complexo fabril. A janela de vidro duplo, larga, de
correr, encontrava-se fechada com o fecho interior. Os estores, levantados,
deixavam entrar o sol, que persistia em ir espreitando por entre as nuvens.
Em cima da secretária havia “dossiers” fechados, um
telefone e algumas folhas soltas. Via-se também um monte de cartas
empilhadas. Um sofá grande de couro castanho estava encostado à parede
frontal daquela em que se encontrava a secretária. Mais duas cadeiras em
frente da secretária e algumas estantes encostadas à parede completavam a
decoração do gabinete. Um aquecedor eléctrico,
perto do corpo, estava desligado. O Inspector
Fagundes encontrava-se na porta de entrada do gabinete, tentando abarcar todo
o cenário; à sua direita a vítima, à sua esquerda o sofá e em frente a
janela. A porta de madeira que
abria para dentro, com um puxador metálico em forma de maçaneta, com a chave
do lado de fora, estava escancarada. Virou-se para trás e observou o escritório.
Três mesas e outras tantas cadeiras, as estantes cheias de “dossiers”, as duas portas em frente – uma dava acesso às
escadas que desciam para o piso inferior e outra levava aos sanitários; duas
janelas, uma em cada uma das paredes laterais, fechadas e de estores
levantados. As secretárias metálicas, com folhas e material de escrita em
cima, apenas abertas a metade, na sua parte traseira, onde a pessoa que lá
trabalhasse poderia colocar as pernas. Cada uma com a sua máquina de
escrever. Percorreu o caminho entre
as secretárias, duas à sua direita e a outra à sua esquerda, e espreitou para
dentro dos sanitários, onde apenas uma pequena janela alta, semiaberta,
deixava entrar pouca luz. Voltou para junto das
secretárias, abrindo as gavetas e espreitando para o seu interior. Uma delas,
a primeira, para quem vinha do gabinete da vítima, era evidente que pertencia
a uma mulher, como o demonstravam os objectos
dentro da gaveta. Em cima um frasco alto, com algumas flores. Ao lado, sobre
o tampo, dois malmequeres. Sentou-se na cadeira. À sua
direita havia a outra secretária, mostrando uma enorme desarrumação em cima
do tampo. Olhou para o gabinete de Alberto. A porta escancarada tapava a
visão da secretária, não deixando ver o cadáver. Levantou-se, dirigiu-se à
porta e desceu para um pequeno átrio, onde uma porta, ao lado esquerdo, dava
acesso à fábrica propriamente dita. Havia mais duas portas que davam acesso a
arrecadações, que se encontravam abertas, onde alguns agentes bisbilhotavam
tudo em busca da arma que ainda não fora encontrada. Saiu pela porta que dava
para a rua e viu, cerca de 10 metros à sua frente, junto do muro que separava
o recinto da fábrica da estrada, uma pequena cabina onde se encontrava um
indivíduo pertencente a uma empresa de segurança. Virou à esquerda e começou
a contornar o edifício. A parede lateral era percorrida por um canteiro de
malmequeres e outras flores de que ele não sabia o nome. Parou debaixo da
janela do escritório, avaliando a altura a que esta ficava e verificando a impossibilidade
de alguém tentar subir sem ajuda de um escadote. Havia flores cortadas e
outras simplesmente partidas. Analisando as hastes quebradas, presas só por
alguns filamentos, era fácil verificar que estas não tinham sido partidas há
muito tempo. Um especialista dar-lhe-ia tempos o mais exacto
possíveis. Continuou o seu caminho,
encontrando-se na parte traseira do edifício. A parede prolongava-se por
cerca de 50 metros. Apenas duas portas: uma lá bem à frente, bastante larga,
na zona fabril, e uma porta mais estreita, a cerca de quatro ou cinco metros
da esquina, e que dava acesso ao átrio existente ao fundo das escadas que
desciam da zona dos escritórios. O Inspector
Fagundes parou de costas para a porta. Olhou para o pavilhão paralelo àquele
em que ocorrera o crime e que servia de armazém, deu um quarto de volta e
regressou pelo mesmo caminho que levara na ida. Parou novamente debaixo da
janela do escritório, analisando mais uma vez as flores partidas;
levantou-se, recomeçou a caminhar, e, ao virar a esquina, observou um dos
seus homens junto da cabina de entrada do recinto, falando com o funcionário
da empresa de segurança. Deveria estar a recolher o seu depoimento ou a
esclarecer qualquer outro pormenor. Nada mais havia a fazer naquele local. O
melhor era ir-se embora. Sentado no seu gabinete,
Fagundes olhava para as folhas que tinha na sua mão. Eram as notas tiradas
pelos seus homens. Não gostava de ser o primeiro a interrogar ninguém.
Deixava essa função para os outros. Era só após ler as primeiras declarações,
recolhidas por outros, que ele então chamava testemunhas e suspeitos para uma
conversa, se fosse necessário. Muitas vezes não era. Os criminosos
entregavam-se-lhe de mão beijada mal abriam a boca. Roberto era um dos
empregados daquele escritório. Por pouco mais tempo. No fim do mês acaba-se o
seu contrato. Ia para a rua. Alberto recusara a renovação do contrato. Havia
umas histórias de amores, desamores e ciúmes. Alberto roubara a namorada a
Geraldo e, por sua vez, perdera-a para Roberto. Para que não ficasse só a
ganhar, Roberto perdia o emprego. Para terminar Alberto perdera a vida. Nas
últimas semanas os contactos entre patrão e empregados eram feitos através de
Geraldo, apesar das relações entre este e Matilde serem quase glaciais, e de
chamar ao par de namorados, "dupla de ceguetas", devido à elevada
miopia de que os dois sofriam. Roberto afirmou ter chegado
às nove horas menos dois minutos. O agente que investigara fizera a
confirmação no relógio de ponto. Quando chegou ao escritório, já lá estava o
Geraldo. Estivera sempre sentado a trabalhar, tendo apenas saído por volta
das 10 e meia pela porta que dava para as traseiras, para fumar um cigarro.
Era proibido, mas, na situação em que se encontrava, estava-se completamente
nas tintas para as proibições. Àquela hora "não perdoava o
cigarrito", segundo afirmou. Achava que talvez se tivesse demorado uns
quinze minutos. Regressara com as "flores da Matilde", quando o
crime acabara de ser descoberto. Esclareceu que todos os dias, no regresso da
"sala de fumo", trazia umas flores para a sua colega. Geraldo era amigo do patrão
desde a infância. Até há cerca de um ano atrás, altura em que Matilde se
transferira do empregado para o patrão, era costume os dois fazerem longas
pescarias de truta juntos. A relação entre os dois azedara, Geraldo estivera
para se despedir, mas os últimos desenvolvimentos da trama amorosa na empresa
fizeram com que os dois reatassem as relações de amizade. Geraldo chegara pelas oito
e um quarto. Tinha serviço atrasado que queria terminar. Afirmou que o patrão
chegara alguns minutos depois, tinham trocado algumas palavras, ele entrara
no escritório e não saíra mais. Às dez horas fora ao gabinete de Alberto,
como de costume, de onde saíra para ir levantar o correio ao apartado que
tinham na estação de Correios. Quando chegara, cerca de três quartos de hora
mais tarde, só Matilde estava no escritório. Entrara no gabinete do patrão e
descobrira o cadáver. O agente que escrevera as
folhas que Fagundes lia, anotara que no escritório fora encontrada a pasta de
cabedal fechada. Após a sua abertura tinham verificado que continha a
correspondência levantada nesse dia. A pasta fora enviada para exame
laboratorial mais pormenorizado. Matilde chegara às nove
horas em ponto. No escritório já estavam os seus colegas. Confessou ter tido
um caso com o patrão, que por acaso era casado, e, como ela não estava
disposta a ser "a outra", mandara-o dar uma volta depois de quase
um ano de esperanças que ele se decidisse "a deixar a legítima".
Reconhecia odiá-lo pelo tempo que lhe fizera perder, iludindo-a com promessas
durante quase um ano. Vira Geraldo ir ao gabinete de Alberto, que se
encontrava aberto desde que chegara de manhã. Voltara à sua secretária,
vira-o baixar-se para retirar a mala do correio, que costumava ficar debaixo
da secretária. Nesse momento ouviu a porta do gabinete bater com estrondo.
Olhou, mas já não viu o patrão. Depois, Geraldo, que entretanto lhe parecera
estar a apertar os atacadores de um sapato, levantara-se e saíra. Algum tempo
depois saíra Roberto, e ela também fora à casa de banho, onde se demorara
cerca de dez minutos. Quando o Geraldo chegou ela já estava sentada a
trabalhar. Não vira Alberto toda a manhã, mas era normal ele não sair do seu
gabinete durante horas seguidas. Quanto ao facto de a porta estar aberta,
também nada havia de estranho. O tempo da porta fechada fora alguns meses
atrás e era só quando ela entrava no gabinete. O funcionário da portaria
substituíra o seu colega às sete da manhã. A fábrica começava a laborar às
oito horas, mas o patrão costumava chegar por volta das oito e meia. Os
empregados do escritório chegavam normalmente às nove horas. Reparara que
naquele dia Geraldo viera mais cedo. O patrão chegara, como de costume, às
oito e meia. Os operários chegavam entre as oito menos dez e as oito menos
cinco. Ele não saíra da cabina de recepção, junto à
porta que dava para a rua. Entrara um fornecedor às nove e meia. Meia hora
depois saíra. Às dez e dez saíra Geraldo e voltara às dez e quarenta. Fagundes picou os olhos, um
pequeno tique que o acompanhava, enquanto esticava a mão para umas notas que
escrevera após a leitura do relatório da autópsia, do médico legista e do
laboratório. Ninguém ouvira qualquer tiro. A temperatura do cadáver,
considerando a temperatura ambiente, apontava para a morte entre as dez e as
onze horas. A autópsia mostrava que a morte não ocorrera mais de uma hora
após a tomada do pequeno-almoço: leite, pão e fiambre. Não havia no corpo
sinais de contusões. Alberto possuía na cabeça uma cicatriz, já antiga, com
cerca de dez centímetros, consequência de um acidente de viação que ocorrera
dez anos atrás. Não tinha cáries, tendo todos os dentes, que se encontravam
perfeitamente limpos, em bom estado de saúde. Alberto sofria de um problema
crónico de asma alérgica. Os ataques de asma eram desencadeados pela presença
de gatos. Na pasta não foi encontrado qualquer vestígio proveniente de uma
arma disparada, nem de terra. Fagundes atirou com as
folhas para cima da mesa, sem vontade de ler mais nada, repetiu várias vezes
o seu tique e sorriu. Será que o inspector Fagundes chegou a alguma conclusão sobre quem,
como, quando e porquê, teria cometido o crime? Queremos saber tudo… |
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© DANIEL FALCÃO |
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