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Autor Data 25 de Março de 2007 Secção Policiário [819] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2006/2007 Prova nº 5 Publicação Público |
A MORTE DA DIGITÁLICA Onaírda Chamavam-na “Digitálica” e foi a vítima. Professora de Informática,
Natália Sá era formada em Engenharia Informática e especialista em sistemas
digitais – “digitálicos”, diziam os alunos,
parodiando o ensino. Leccionava numa escola
secundária, e dava aulas em sala única para o efeito. Tinha por costume o ter
sempre em cima da secretária um copo de vidro opaco com água de beber, sendo
novamente cheio a meio de cada aula pela auxiliar de acção
educativa Olga. A especialidade da professora deu a que aos alunos lhe
chamassem “prof. Digitálica” No decorrer da aula das
17h00, a professora sentiu-se indisposta, nauseada, com vómitos, sensação de
vertigens e de discromatopsia. Tinha aflições de diarreia, chegou a ir à casa
de banho, regressou à sala, mas não melhorou e às 17h45 caiu inanimada no
chão. Alunos deram o alarme, veio o director e o
marido, também professor na escola. Chamou-se o 112. O médico socorrista
diagnosticou que a vitima apresentava sintomas de
intoxicação e foi levada de imediato ao hospital, onde chegou já cadáver. O director espalhou a notícia de que a professora tinha
sido envenenada. Acusação gravíssima. Via-se que sabia algo mais e insinuava
quem era o autor do crime. O inspector
Garçôa, o “teórico” da PJ, tomou conta do caso e de
imediato foi à escola falar com o director. Como a
sala deste era no mesmo piso onde leccionava a “Digitálica”, mostrou-se ao contínuo. Este, quando soube
quem era, não o encaminhou logo para o director e
forneceu-lhe pistas importantes. Afirmou que nesse dia Olga
tinha mudado sempre a água do copo em todos os períodos. E o curioso, segundo
lhe disse Olga, é que a professora bebia sempre o conteúdo do mesmo, dando a
impressão de que estava a tentar restabelecer o equilíbrio hidroelectrolítico no seu organismo. Devido à posição
estratégica, viu sempre quem entrou na sala da “Digitálica”
durante os intervalos, dado que ela saía sempre da sala. Assim, no das 11/12
entrou o professor de Ciências Humanas e Sociais Eduardo Sá, marido da
professora. No das 14/15 voltou a entrar o Eduardo e no das 15/16 entrou o
professor de Ciências Físicas e Naturais Taborda. O contínuo pediu a atenção
do “teórico” para esta personagem, pois dizia-se que era um antigo apaixonado
da ”Digitálica” e que tinha sido repudiado por ela,
não tendo aceite bem a atitude da amada. Sabia que
na aula prática de Química das 15h00 ele tinha confiscado a um aluno um
frasco de “605 forte” (agora com outra designação comercial), veneno muito
usado na agricultura. Desculpou o aluno, mas não o devolveu no fim da aula.
As visitas de Taborda à professora originavam ciúmes de Eduardo e este
desconfiava que a mulher não resistia ao assédio do colega. Todos viam que
ela repudiava Taborda, menos o marido. Garçôa preferiu não ouvir mais nada sem falar
primeiro com o director. Este pouco adiantou sobre
a morte, mas chamou a atenção do comportamento do professor Taborda, no
assédio à “Digitálica”, e se falou em envenenamento
talvez fosse precipitado, mas mantinha a opinião. Garçôa
pediu-lhe facilidades para interrogar possíveis suspeitos, aqueles que
entraram na sala de aula e que podiam ter metido veneno no copo de água da
professora, para que esta ingerisse o liquido mais
tarde. O director chamou os suspeitos e aproveitou
para entregar ao inspector as fichas de cadastro
pessoal não só destes, mas também da falecida. Curiosamente, e talvez para
justificar o elevado número de faltas que davam ao serviço, os professores
tinham uma ficha clínica invejável. Foi chamada Olga. Esta
afirmou que tinha entrado na sala em todos os períodos, tinha enchido sempre
o copo de água e tinha confirmado que a professora bebia todo o conteúdo.
Quanto aos rumores sobre o Taborda e a Natália, disse que não tinha nada com
isso e que lhe passava ao lado. De seguida veio o professor
Taborda. Tinha 54 anos e bom aspecto, apesar de
sofrer, em estado um pouco avançado, da síndroma de Wolff-Parkinson-White. Era obrigado a tomar medicamentos a preceito, mas
evitando completamente alguns que poderiam interactuar
negativamente. Era professor de Ciências Físicas e Naturais e as aulas
práticas no laboratório eram o seu expoente profissional, em especial a
trabalhar com tóxicos. Tentou ver a sua colega Natália no intervalo das
15/16, mas não a viu. Quando lhe falou no frasco do veneno apreendido ao aluno,
ficou vermelho. Confirmou a apreensão do frasco ao aluno, que não o tinha
devolvido no fim da aula e que tinha espalhado o conteúdo numa sanita. O
frasco vazio deitou-o no contentor do lixo. “Incrível”, pensou Garçôa. Quando Garçôa
interrogou Eduardo Sá, este estava calmo. Viu que o “teórico” tinha a sua
ficha clínica nas mãos, explicou-lhe que, tal como sua mulher, era um doente
conformado com o seu estado. Sofria de “insuficiência cardíaca” e uma
arritmia diagnosticada como supraventricular. Estava medicado com um fármaco
que, para além de dar força ao coração (chamado “efeito inotrópico
positivo”), lhe reduzia a frequência cardíaca, obrigando o seu coração a
bater a um ritmo mais lento e fácil de suportar. Nunca lhe disse o nome do
fármaco. Garçôa pouco se importou com esta omissão.
Eduardo guardava este medicamento em local seguro e inacessível a terceiros,
incluindo sua mulher. No dia da morte desta, deslocou-se à sua sala, no
intervalo das 11/12 e no das 14/15, porque a mulher lhe pediu que lhe trouxesse
um analgésico (tipo aspirina) pois sentia-se mal. Não a viu em ambas as vezes
e retirou-se para a sua sala. Pelo telemóvel, disse-lhe que tinha metido no
copo o tal analgésico. Almoçaram em turno diferente. Só a voltou a ver caída
no chão e já desmaiada, a seguir ao alarme. Nunca referiu qualquer aspecto da vida conjugal com a mulher. Garçôa franziu o sobrolho. O “teórico” ainda
interrogou o director para saber algo mais sobre a
Natália. Relativamente a um romance entre Natália e Taborda, não sabia de
nada, mas já tinha sido informado do caso do frasco de veneno que Taborda
tinha apreendido a um aluno e que, de certeza, o tinha consigo, quando entrou
na sala da colega às 14h50. “A ocasião faz o ladrão, não é, senhor inspector? E custa-me dizer isto, mas Taborda não é boa
peça.” E estranhou o destino que Taborda deu ao frasco e ao seu conteúdo.
Admirava-se que Natália mantivesse um romance com ele, pois também era doente
como o seu marido. Estava medicada a preceito. Sofria do coração, pois tinha
uma “cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva” e por vezes apresentava
situações de “hipercalcemia” e” hipocaliemia”
significativas. Garçôa não teve acesso ao resultado
da autópsia, por já ter a presunção de quem era o criminoso, mas porque a
análise da mesma iria ser feita pelo MP para fundamentar a acusação. No
entanto, soube que a falecida apresentava uma significativa desidratação e
também “hipercalcemia”. Quando o ajudante de Garçôa coseu o processo, rotulou-o “A Morte (da) Digitálica” (501/06 homicídio). O “teórico” sorriu. |
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© DANIEL FALCÃO |
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