Autor Data 13 de Junho de 2004 Secção Policiário [674] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2003/2004 Prova nº 10 Publicação Público |
EMENTA: DOIS EM UM M. Constantino Fiz, em certa fase da minha
vida, muitas visitas ao Praia-Hotel-Âncora. “Hóspede de estima dos
proprietários”, a quem conhecera, em circunstâncias que não vêm ao caso:
Pedro Navarro, excelente profissional no ramo, e Clemente Nunes, sócio
capitalista – “o Clemente Rico”, como era conhecido no Alentejo. O Âncora era o protótipo da
moderna geração hoteleira, formado por um grande U, com uma parte mais curta,
para dar lugar ao pequeno lago, em cujo centro foi implantada uma âncora de
pedra com cerca de quatro metros de altura, do cima
da qual caem sobre a sua estrutura grossos jorros de água límpida – uma
espécie de âncora “chorante”! Com apenas três
pisos, centena e meia de quartos em ambos os lados dos corredores centrais.
Amplas salas e servido por profissionais qualificados, eles e elas de calças
ou saias negras, jaquetas, luvas que é preciso mudar com frequência, camisas
brancas a que não falta a distinção de um laço da cor das calças. Nunca deixaram de me
surpreender os eventos daquele terrível ano de 82 – ano negro do “Âncora”.
Primeiro, a morte misteriosa da linda e loura Elsa, jovem irmã do também
louro e elegante servidor Marco, “o querido das estrangeiras solteironas”… e
não só, dizia-se. A rapariga, isolada no silêncio de um mundo próprio,
tornara-se uma referência agradável, nas visitas ao irmão. Conheceu Maia, o
chefe dos criados, maduro, atraente; compreendia-a e tomou disso vantagem.
Paixão fulminante, que tomou o coração de Elsa. Marco e Maia tornaram-se
amigos. Depois, Maia começou a faltar aos encontros – o carro desportivo
tomou o lugar de Elsa. Esta esperava-o na praia, incapaz de gritar a sua dor;
só as lágrimas a denunciavam. Um dia, deixou as roupas na praia, entrou na
água e não voltou. O cadáver apareceu, dias depois, algo distante, dilacerado
pelo embate nas margens. Acidente? Suicídio? Impossível decidir. A tragédia de Setembro
seguinte excedeu o impensável. O patrão Navarro chegaria antes do almoço,
informou-me o solícito e empertigado Maia. Chegou e almoçou comigo, de
semblante carregado. Desabafou, preocupado, que o sócio vinha a caminho, e
esperava “borrasca” com um dos criados, recentemente admitido. Não esperava a
visita, e o quarto dele, privativo (o nº 1), no primeiro piso e frente ao
lago da âncora, tinha sido dispensado a um grupo de ricos árabes, que
discutiam questões de petróleo. Requisitaram três dezenas de quartos, dos
dois lados do corredor, e uma sala. Têm os seus “gorilas”. Comem muito, bebem
muito, não incomodam; excepto que ninguém ali passa, sem ser
revistado, até com detector de metais e raios X,
não vá alguém engolir um prego matador de árabes! Riu e acrescentou: O quarto
do Clemente foi na onda, ainda que desocupado. Nem cama tem! Afinal, o enfezado
alentejano chegou sereno. Fechou-se no escritório com Navarro e, porque este
lhe disse que eu chegara, de manhã, pediu que me procurassem, para fazer-lhes
companhia. Clemente sabia que estava ali o João Santo – o tal recém-admitido,
jovem muito moreno, atleta musculado, a que Navarro se referira. Fora,
segundo Clemente, um comando, atirador especial. Solitário como um lobo – daí
o nome de guerra de “Santo-Lobo” –, pacientemente empoleirado numa árvore
próxima de um acampamento IN, uma arma pequena e leve, uma Roger Mini 14/5R,
de grande poder destrutivo, munida de mira dióptrica, visava o cabecilha do
grupo com um só tiro, mortal. Mais de uma dúzia de comandantes IN caíram
nestas condições, provocando pânico, até que, por engano, matou um camarada
que usava idênticos métodos. Reconduzido ao grupo sob o comando do alferes Daniel
Fontes, herói morto, filho dele, Clemente, João salvou-lhe a vida duas vezes,
mas não a terceira, ao perseguirem, a descoberto, o IN em fuga. Quando veio
de Angola, em 1975, procurou-o, para lhe agradecer a protecção
a Daniel e falar-lhe deste, mas só recentemente ele consentiu passar umas
férias nas herdades do Alentejo. Tencionava dar-lhe propriedades e fazê-lo
seu herdeiro; em vão. Ninguém sabe como conseguiu passar a célebre arma; o
certo é que a utilizou para abater os milhafres, por mais altos que passassem
– nunca mais que um tiro! Raspou-se sem se despedir, levando cerca de 1500
contos. Mas não interessa, dou-lhe mais, se precisar… Espero que não o
avisem. Terei tempo para lhe falar com calma e oferecer-lhe quota no hotel;
que tal? “E agora bebia um conhaque” – terminou. Navarro telefonou. Alfredo
apareceu com o conhaque e o habitual uísque para Navarro. Maia, que
acompanhara Alfredo, esperava. Quando este saiu, Clemente olhou directamente para o chefe dos criados. Como que numa
acusação: Tive conhecimento de que dois empregados, melhor, dois criados, têm
enganado alguns hóspedes com a venda de objectos de
bronze, rotulados de antiguidades. Quero isso apurado, urgentemente. Maia,
embaraçado, prometeu descobrir o culpado… tinha uma ideia. O diálogo foi
ouvido por Alfredo, que, ao entrar na sala dos empregados, exclamou: Vem aí
“o Carmo e a Trindade”! O patrão Clemente quer saber quem intruja os hóspedes
com a venda de antiguidades falsas. O Maia tem uma ideia de quem seja; vocês
já ouviram falar no negócio? Claro que parecia um segredo bem guardado: Rui,
Morais, Laurindo, Marco e Lopes, os presentes, mostraram total ignorância. Navarro tenta convencer
Clemente a ir dormir na sua casa. Este quer dormir no seu quarto, nem que
seja no chão; tem no armário roupa e acessórios para a estadia. Maia lembra
que, se o patrão não se importa de dormir numa cama de campanha, ele tem uma
no seu quarto para uma eventual dormida do irmão, cama essa que poderia
instalar no quarto. Proposta aceite. Navarro foi buscar o molho das chaves e
entregou-as, com a recomendação: Estão aí todas as chaves mestras do Hotel.
Vai lá armar a cama e não incomodes os senhores do petróleo. A tarde aproximava-se do
fim. Maia já preparara a cama. Passou por João Santo, entregou-lhe as chaves
e pediu que levasse duas almofadas e um candeeiro de mesa para o quarto nº 1;
e não se pegasse com os árabes! Ele, Maia, tinha de levar o irmão ao médico.
De facto, o irmão, surdo-mudo, esperava no átrio. Marco observou, com
tristeza, a conversa mímica entre os dois irmãos; e, quando o surdo-mudo se
afastou, reentrou na sala, cismático. Cerca de meia hora depois, sem voltar a
ver João, Maia recomendou que era tempo de preparar as salas de jantar.
Alfredo pensou: “Ainda tenho tempo para um mergulho”, e evaporou-se. Marco
resmungou: Vou para a copa; tenho de tirar o lacre a duas ou três garrafas do
“Especial Clemente”, para o velho… Jantámos na mesa de
Clemente, servidos por Marco, nervoso, mas elogiado pelo patrão: “Ainda bem
que te lembraste, rapaz. Esta colheita de 1979 é divinal.” Navarro optou por
jantar em casa. O “Santo” não se mostrou. Maia primou pela ausência. Nessa noite, um homem
sonhou (mas acordado), semi-recostado na almofada
da cama, olhos postos num livro, que não lia. O seu sonho não incluía a morte
cuspida, quase silenciosa, do cano negro de uma arma… Na manhã seguinte, pelas
8h30, “O Lobo”, audaciosamente, levou o pequeno-almoço ao quarto nº 1. Passou
o controlo dos árabes, inspeccionado dos
calcanhares ao céu-da-boca, verificada a cafeteira do café, o pão, etc. Bateu
à porta, ninguém respondeu; rodou a maçaneta e entrou: Clemente jazia morto. Sem nada revelar, voltou,
revistado, ainda mais rigorosamente, por uma nova segurança, que sucedera à
anterior. Deixou a bandeja no quarto e telefonou a Navarro. Foi este, em
pânico – pela perda do sócio e inevitável escândalo – que me acordou.
Lembrei-me do inspector-chefe Valdemar, um antigo
colega que optara pela P.J. Quando chegou, com a equipa
investigadora e médico, aguardava-o outra surpresa. Porque Maia não chegara
nem atendia o telefone, alguém se lembrou de procurar no quarto – lá estava
ele, com a garganta cortada! Fizemos sair os cinco empregados, que, além do
Maia, tinham quarto no hotel – Alfredo, Marco, Rui, Raul e Pinto – e vedámos
o acesso. Valdemar começou pelo
Clemente. No corredor, chamou os vigilantes árabes e deu-lhes conhecimento da
morte suspeita. Confirmou que, desde a noite anterior, só ali passaram Maia,
Clemente e João, este à noite e de manhã. Todos revistados e sujeitos aos aparelhos.
Seguimos e entrámos no quarto nº 1: a luz da mesa-de-cabeceira ainda estava
acesa, embora a claridade que se escoava pelos vidros da janela de
guilhotina, filtrada por leve cortina de tule, fosse bastante para ver a
vítima, recostada na almofada, com um livro caído sobre o peito. O fotógrafo
trabalhou. Valdemar fez um rápido esboço e entregou-mo: O Dr. Dinis aproximou-se do
morto, transmitindo em voz alta: O corpo mantém a posição de quando foi
atingido pela bala que trespassou o crânio, em linha descendente, do supra-orbital esquerdo, saindo do lado oposto. Não há
vestígios ou tatuagens de pólvora na área circundante do orifício de entrada;
a velocidade rotativa criou um choque hidrodinâmico nos tecidos,
destruindo-os. Face à flacidez muscular e à densidade da película que se vai
formando no globo dos olhos abertos, a hora da morte situa-se entre as 2-3
horas da madrugada. Valdemar tocou a beira da
mesa-de-cabeceira lascada, apontou o pequeno orifício no vidro inferior da
janela, que a bala não estilhaçou, mas deixou sobre o parapeito interior, do
lado esquerdo do buraco, uma pequena lasca de vidro; olhou o orifício na
cortina de tule e finalizou: “A bala veio de fora,
fez ricochete na mesa e deve estar por aí”. Procurou-se, incluindo no
cadáver, com detector e raios X dos árabes – sem
êxito. O agente Lemos farejava, de lente em riste. Encontrou, na perna da
cama, uma mancha escura, que o intrigou. Recolheu-a, com a etiqueta A-1. O
quadrado do vidro, com o orifício que Valdemar marcou com um giz vermelho,
seria cortado posteriormente e marcado A-2. Saímos. Observámos que era
impossível um disparo do pátio, o centro do U, pois a janela ficava a 3
metros do solo. Procurámos Navarro no escritório, onde se lamentava, com um
saco de gelo sobre a testa. Facultou-nos a chave do armazém, por cima da
discoteca, de cuja única janela seria possível atingir o quarto fatídico. No
entanto, usando o cabo da vassoura como arma apontada ao orifício da bala, em
qualquer das muitas posições escolhidas, só poderíamos ver os pés da cama e o
espaço que se lhe seguia. Desanimados, descemos e voltámos para a morte de
Maia. Aqui, o panorama era
diferente, havia que ver. O morto caíra para trás, derrubando uma pequena
cadeira, junto à mesa baixa, onde estavam dois copos (B-1 e B-2), com restos
de uísque. Sangue coalhado em abundância espalhava-se pela camisa branca e no
chão, onde caíra uma navalha de barbear, suja de sangue (B-3) e junto à mão
direita do morto, que, milagrosamente, estava limpa. O Dr. Dinis citava:
Corte profundo da esquerda para a direita (vê-se a olho nu), com instrumento
corto-perfurante; esmagamento, pelo golpe, da carótida e veia jugular –
degolação, claro! “Rigor mortis”, salvo autópsia em
contrário, num período das 20, 21 às 22 horas de ontem. O agente Lemos já
encontrara vestígios idênticos a A-1 na parte de trás do fogão (recolheu e
marcou B-4), alguns cabelos fracos, sujos e estaladiços (B-5). Um pó azulado,
que aderira a um sapato – não do morto – e marcou o soalho, foi rotulado B-6.
No armário do morto, muito limpo, apenas um tacho de 20 litros, debaixo do
qual se encontrava um Buda de bronze e um retrato de Elsa. Saímos para reunir os
empregados, para interrogatório. Mais uma vez, João Lobo era indomável: havia
saído com o saco dos tacos para o campo de golfe. Os depoimentos pouco
adiantaram, salvo que era impossível um disparo no pátio, pois o segurança e
o porteiro da noite estiveram por ali toda a noite. Aliás, foi este último
que nos deu uma réstia de esperança: cerca das 21 horas, quando ia entrar de
serviço, viu um homem dirigir-se ao quarto de Maia. Pareceu-lhe conhecido,
mas impossível de identificar com rigor, pois nada observou de particular. Depois que os
investigadores regressaram, Valdemar ficou por ali a bisbilhotar, vistoriando
os quartos dos criados e demais dependências, sem proveito, até à chegada dos
resultados das autópsias e análises laboratoriais. Chegaram, já tarde, no dia
seguinte. Leu: “a) autópsias
confirmam dados iniciais; b) A-1: ácido acético, vinagre, carbonato amónio,
sal, ácido tartárico e acetato de cobre; A-2: bala pelo calibre (5,6?), revestida aço; B-1: impressões digitais Maia; B-2: s/
impressões digitais; B-3: s/ impressões digitais, arma da morte; B-4: mesma
mistura A-1; B-5: s/ bolbo, pó aderente; B-6: mistura colofónia, cera e sebo,
pó de mínio.” B. sorte! Levámos uma noite de
divagações até que exclamámos: Eureka! É tudo. Os leitores poderão
desenvolver os respectivos relatórios, com as
justificações deduzidas. |
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© DANIEL FALCÃO |
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