Autor

Marvel

 

Data

Agosto de 1981

 

Secção

Enigma Policiário [61]

 

Competições

II Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de Espadas

6ª Etapa | Coimbra – Guarda – Lamego

 

Publicação

Passatempo [83]

 

 

O FRUTO DO BEM E DO MAL

Marvel

 

Em tempos remotos e terras longínquas, num nicho lúgubre escavado pela Natureza na rocha, vivia, infeliz, a pobre Mayâ. Quase só não privada do ar alimentador da vida, pobre também de espírito, que não de ambição e amor maternais, revia-se a pobre Mayâ nos gémeos Nagor e Nimpor, frutos da curta felicidade que para ela concebera Tamul, o guerreiro, vitimado pela naja pestilenta.

E, cada vez que lhe aprazia imaginar o futuro dos entes tão amados sentia o coração enrijar-se, como que parar de bater.

Sucedeu, pois, que, um dia, resolveu procurar o santo homem que vivia num tronco oco do milenário baniam, mortificando o corpo e cultivando o espírito. Disse-lhe da sua desdita, do tigre feroz que percorria o pantanal, das doenças que deste se evolavam, do arbusto espinhoso que feria de morte, de tudo quanto poderia lançar Nagor e Nimpor numa orfandade incipiente e trágica. Pediu-lhe, enfim, providências para quando e se tal sucedesse não faltasse aos deserdados protecção e alimento.

O santo homem ouviu, meditou e respondeu:

– Mulher, Aquele que tudo sabe e pode iluminou-me com resquícios do seu poder e sabedoria. Digo-te que não criou nenhum ser perfeito e farto porque não quis privá-lo do estímulo da conquista do que ele quer e lhe falta. E pretendes tu, mulher, uma excepção injusta para benefício dos teus filhos?

– Santo homem, não te peço que lhes dês a perfeição. Rogo-te para os inocentes, venerável ancião, o que os ampare no futuro e lhes dê algum prestígio.

Tendo-a olhado longamente em silêncio, o santo homem pegou num fruto de polpa brilhante e multicolor e cortou-o em dois. Mergulhou cada metade em recipientes distintos e mostrou ambas à pobre Mayâ.

– Mulher, o poder do ente supremo insuflou-se nisto que vês. E digo-te que quem comer esta metade logo será a criatura de melhores sentimentos da Terra, isenta do mal; já quem esta ingerir incorrerá na posse dos piores instintos do mundo, inconciliáveis com o bem. Não receias, mulher, que um dos teus filhos represente o Bem e o outro o Mal integrais, a troco de serem ambos poderosos?

– Não, não! – gritou a pobre, com fervor.

Então, num gesto breve, o santo homem uniu as duas metades, e ele rodou, velozmente, sobre si próprio, uma e mais vezes. Quando parou… Maravilha! O fruto retomara a sua forma inicial, compacta, quase redonda.

– Eis, mulher, o fruto do Bem e do Mal. Leva-o, já que assim o queres, e reparte-o pelos teus filhos. Sucederá o que desejas, mas não esqueças que o poder não é o agente da felicidade. Vai em paz! Porém, aviso-te ainda que tais efeitos se darão imediata e imutavelmente.

Saiu depressa, com o coração alegre, a pobre Mayâ, que, anelante e feliz, abraçou os filhos e viu-os cortar e comer, cada um a sua parte, o fruto extraordinário.

Quinze vezes o Verão passou. Sobre o formoso país reinava o tirano Bindur, odiado e temido pelo povo. A certa altura, decidiram os dois irmãos, já mancebos ágeis, valentes, destros nas armas, fomentar a revolta que depusesse o infame. Encorajaram. Aliciaram. Provocaram. E, certo amanhecer, assumiram o comando da insurreição. Quis o destino que um dos primeiros a cair, tocado de morte, fosse o próprio pérfido governante. Em redor do seu corpo agruparam-se, defendendo-o, alguns dos seus elementos fiéis, que, um após o outro, foram sendo também abatidos. Breve ao último, um gigante hercúleo, sangrento e feroz, lhe foi impossível opor mais resistência. Já dez lâminas se erguiam sobre ele, no antegozo de devassar-lhe as entranhas, já ele se conformava com a morte próxima, querendo-a somente rápida, quando a voz de Nagor, jovem mas autoritária, susteve a acção iminente:

Alto! Não matem esse homem! É um bravo!

O vencido arranjou forças para se erguer. Deu três passos cambaleantes e prostrou-se ante o seu juvenil salvador.

– Senhor, servi Bindur, a quem jurei fidelidade, até ao termo das minhas forças. Agora que ele morreu, permite, senhor, tu que me salvaste a vida, que te sirva tão fielmente como o servi a ele.

E conta-se que Nagor, sorrindo, aceitou.

Triunfante a revolta, quiseram os revoltosos colocar no poder um dos seus chefes. Sucedeu, então, que ambos a tanto se negaram, não querendo, na sua fraternidade, nenhum deles ser mais do que o outro. Até que o impasse derivou numa solução intermédia: reinariam ambos, cuidando um da parte civil e o outro da militar.

Perante a felicidade inenarrável da mãe, assumiram seriamente os respectivos cargos.

Cresceu em Nagor a ambição de converter o seu exército no mais aguerrido e receado da Terra. Para tanto, não poupava a duro e perigoso exercício os seus soldados, que, amiúde, saíam estropiados do adestramento, quando não perdiam a vida. Neste caso, o tesouro real abria-se para proteger as viúvas e os órfãos.

E Nimpor cuidava, atento, da administração da justiça do reino. Observou como certo juiz, perante quem comparecera o autor confesso do roubo duma saqueta de moedas, outorgou ao queixoso o direito de receber em trabalho o valor do prejuízo sofrido. Nimpor, nessa manhã mal disposto porque uma das gaiolas onde gorgeavam as suas pequenas aves predilectas se encontrava num estado que considerou imundo, a tal se opôs. Num acesso de raiva descontrolada, clamou que a sentença só poderia ser a morte, que deveria atingir, igualmente, por inépcia, o juiz.

Alternando os seus deveres com grandes caçadas ao tigre e a prática de desportos bélicos, podia afirmar-se que a existência lhes corria propícia. Rodeavam de carinho a mãe, que idolatravam. Entretanto, o povo murmurava… Flagelado por Bindur, começava a duvidar que a sua sorte, com Nagor e Nimpor, tivesse sofrido melhoras. Assim, houve um dia em que, terrível, nova sublevação sacudiu o belo país, onde o Sol nascia. Porém, severamente preparadas por Nagor, as forças governamentais em breve a sufocavam.

Mas caro seria o preço da vitória, pelo que Nagor não foi contado entre mortos, feridos ou ilesos. A última vez que o viram comandava a carga de lanceiros que desbaratara definitivamente os rebeldes.

Ordenaram-se buscas, lançaram-se pregões, prometeram-se alvíssaras, mas os dias foram passando sem lograr diminuir o sofrimento de mãe e irmão. Até que, no alvor duma manhã, coberto de sangue, suor e poeira, montando um cavalo negro no estertor das forças, cimitarra a retalhar o espaço em fúria, eis que Nagor apareceu. E porque o surpreso guarda demorou mais do que a sua paciência consentiu a franquear-lhe o portão, atravessou-o lado a lado com a arma. Havia sido aprisionado num templo dos subúrbios da capital, narrou com ira ao irmão, por um grupo de revoltosos sedentos de vingança, de cujas garras selváticas houvera de escapar.

Rezam as crónicas que, formado com pressa, um poderoso troço de tropas marchou sobre o templo em missão punitiva. Não demorou a acção, pelo que breve o contingente empreendia o regresso, na posse de numerosos prisioneiros, cujos clamores de inocência eram aplacados com chicotadas vigorosas.

Julgados sumariamente, por Nimpor, teriam tido como fim morrer sob as patas dos elefantes reais se uma voz, a de Nagor, a tanto não obstasse. Pois que, defendia ele, a si e só a si competia decidir quanto ao fim dos condenados.

Constou que não foi sem algum enfado que Nimpor acedeu.

Portanto, no dia aprazado, Nagor surgiu a superintender aos suplícios com lugar na vasta arena. As mortes a fogo lento terão sido as de sua maior satisfação, que não pareceu conferir às lutas inglórias que forçou outros cativos a travarem entre si. Horrores nunca vistos no malfadado país, já tão manchado de sangue de irmãos por irmãos.

Retomando as suas funções específicas, intensificou o treino dos soldados, castigando a imperícia com rigor execrando. Mais promulgou que todo o guerreiro que saísse mutilado das tenebrosas manobras fosse simplesmente sujeito ao golpe de misericórdia.

Converteu-se num ser macambúzio e ensimesmado. Era de maus augúrios para a vida, bens e honra de quem se encontrava na sua imediata dependência o momento que marcava o fim dos seus longos períodos de abstracção para se entregar a uma actividade frenética.

Enfraquecido e dizimado, o povo aguardava que o próprio exército, farto de tantas atrocidades, deixasse de proteger os dois irmãos.

Em Nimpor, símbolo da indecisão, a tensão aumentava.

Nagor falou a Nimpor. O perigo espreitava-os. Inesperado. Cobarde. Fatal. Na comida residia o maior. Um acepipe envenenado… Urgia que alguém provasse antes deles o alimento que depois ingeririam. Alguém da sua confiança absoluta.

Alguém… sua mãe, a pobre Mayâ!

Nimpor cedeu a um ataque de cólera intensa, e certamente que uma tragédia fratricida logo ali ocorreria se não acontecesse a intervenção da pobre Mayâ, que, defendendo com alvoroço a proposta, logrou vencer a relutância de Nimpor.

As refeições dos dois irmãos realizavam-se num aposento pequeno,o solo de mármore juncado de ricos coxins, que formavam dois tronos idênticos, um fronteiro ao outro. Comiam, com a ajuda das adagas, em duas salvas de prata, de cuja higiene, salvas e adagas, eles próprios se ocupavam. Para maior segurança, a comida era transportada até à porta pelo antigo prosélito de Bindur a quem Nagor poupara a vida e confiada aos cuidados da mãe. O guerreiro fechava, em seguida, a porta, única do aposento, ficando de guarda do lado de fora.

Sob o olhar atento dos filhos, a pobre Mayâ mexia e provava um pouco de tudo, caindo depois, por longos momentos, no que se diria um êxtase gustativo. Só então Nagor e Nimpor recebiam a comida nas respectivas salvas, caminhando de seguida para os tronos, que ocupavam indistintamente.

Ora, nesse dia fatídico, já acomodados e preparando-se para sacar das adagas, veio de fora um estrondo que a todos sobressaltou. Nagor ergueu o olhar da salva para encontrar a mãe, transida de terror, já de ouvido encostado à porta. Prestes os filhos a rodearam, preparados para o perigo insólito e desconhecido, mas a voz do guarda logo lhes deu sossego. Uma sentinela descuidada deixara cair a lança no lajedo, nada mais. Nagor sentou-se e Nimpor imitou-o. Em voz tenebrosa, gesticular e expressivo, o chefe dos exércitos profetizou duramente o futuro próximo do desastrado, só depois se ocupando do repasto, que Nimpor já havia iniciado.

Mas sem que tempo houvesse tido para mergulhar a adaga no alimento, viu Nimpor vacilar convulsivamente e, por fim, baquear sobre a mesa. Morto! Envenenado!

Um momento estático, virou-se depois, querendo luz sobre o sucesso, para a mãe, imagem da dor, ainda apoiada à porta.

Esta, a porta, abriu-se então. Com fragor e aparato, impelindo com golpes rudes o fiel guarda, o santo home e a sua escolta invadiram o local.

– Aquele que tudo sabe fez-me ver quanto aqui se passou – proferiu, em tom cavo, o ancião. – Os resultados superaram, em desgraça, as previsões. Enfim, mulher, como vês o poder não conduz à felicidade.

 

PERGUNTA-SE:

Quem, e como, matou Nimpor? Exponha as conclusões que lhe permitiram afirmá-lo!

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO