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Autor Data 24 de Junho de 2007 Secção Policiário [832] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2006/2007 Prova nº 8 Publicação Público |
O INSPECTOR FIDALGO E O CASO
“ANAQUICOÍNES” Inspector Fidalgo Anaquicoínes procurava a solução para um enigma que a
atormentava. O mote fora dado pela queda que lhe aconteceu e a partir daí foi
um corrupio de acontecimentos, cada um mais complicado do que o anterior.
Verdadeiramente já só lhe faltava que a acusassem da prática de terrorismo e,
mesmo assim, parecia não estar essa hipótese afastada de todo. O caso explica-se por si.
Uma moça terá caído de forma bastante aparatosa na carruagem de um comboio,
batido com a cabeça e ficado amnésica. As pessoas que seguiam na composição,
ao que contaram, correram para ela, mas só duas é que estavam despertas para
contar o que se passou. O Inspector
Fidalgo tomou nota do que viu e ouviu, mas sem o brilho nos olhos que era
habitual quando fazia uma investigação. Disse um dos observadores:
“O comboio vinha calmamente, de sul para norte, juntinho ao rio. A linha é
magnífica. Se nos chegarmos à janela, a dois passos de nós temos o precipício
e lá no fundo o rio serpenteando. A moça estava sentada ali, mesmo junto à
janela e olhava para o precipício. Tentei meter conversa com ela, mas deu-me
com os pés. De repente levantou-se, foi até à frente da carruagem, belíssima,
com a blusa branca e as calças muito justas, magnífica, fez uma espécie de
dança, olhou fixamente para mim, deu dois passos em frente e disparou à
queima-roupa sobre o desgraçado do tipo que estava ali sentado, junto à
janela, precisamente no momento em que cruzámos com o comboio que seguia em
sentido contrário. A bala estilhaçou completamente o vidro, que se espalhou
pela carruagem e deve ter-se cravado na outra composição. A seguir, voltou
para o seu lugar, tentou abrir a janela, mas desequilibrou-se no momento em
que o comboio rodou à esquerda, rumo à ponte, bateu com a arma no vidro, que
também se estilhaçou e espalhou completamente e depois voltou a oscilar
quando a composição virou à direita, após a ponte, ao retomar a margem do
rio. Só nessa altura ela conseguiu atirar a arma pela janela quebrada, mas
acabou por cair com estrondo e ficou estendida, com a cara contra o chão.
Fiquei completamente petrificado e não tive reacção…”
Disse o outro: “Eu estava
no lugar atrás da moça. Vi-a levantar-se e fiquei a apreciar aquelas curvas
maravilhosas, de quem tem tudo no sítio devido. Ela foi até lá à frente, olhou
para o fundo da ravina, para o rio, voltou-se, a dançar, deslocou-se um
bocado para aquele lado e disparou um tiro no passageiro que lá estava
sentado, penso que a dormir. Depois veio na minha direcção,
entrou no seu lugar, bateu na janela com a arma, o que fez com que milhares
de pedaços de vidro se espalhassem e quando o comboio endireitou a sua
marcha, depois da ponte, atirou a arma pela janela e caiu redonda. Fiquei um
bocado à espera para ver se se levantava e depois fui ver, mas estava desmaiada.
Alguém accionou o alarme e o comboio parou.” Os outros dois passageiros
dormiam e só foram acordados pelo barulho, atirando-se ao chão quando os
outros dois lhes gritaram para o fazerem… Um deles, já idoso, quase ia tendo
um ataque e não dizia coisa com coisa. O quarto não se lembrava bem do que se
passou depois do sobressaltado acordar, não soube dizer se a moça estava em
pé ou deitada, nada. Só se lembrava do que os outros dois lhe contaram,
enquanto aguardavam pela polícia, e da imagem que lhe ficou de espreitar e
ver os outros dois passageiros debruçados sobre a jovem a sacudir os
estilhaços de vidro de cima dela. Mesmo naquele momento, ainda ficava em
grande desconforto só por pensar o que teria levado uma moça tão querida a um
acto daqueles. A rapariga acabou por ser
reanimada pelo revisor e pelos passageiros. Estava descalça e os sapatos
alinhados debaixo do banco, não escaparam a alguns estilhaços de vidro. Ao
levantá-la, descobriram por baixo um livro policial, “O Crime do Expresso do
Oriente”, aberto na página 121. Não foram encontrados documentos, bagagens,
carteira, nada que fosse dela. Um enigma a que o Inspector Fidalgo deu um nome: Anaquicoínes! No fim de tudo, a
investigação deu resultados curiosos. Apareceram uns tipos da
secreta e levaram a vítima, um espião perigoso, que devia transportar com ele
uns tantos segredos de Estado – falava-se dos planos de localização do futuro
aeroporto de Lisboa! –, mas que não foram
encontrados em lado nenhum. A arma foi recolhida logo
após a ponte, no sítio aproximado onde os dois passageiros disseram, e foi a
responsável pela morte. Só tinha impressões digitais da moça e na coronha
alguns cabelos e células que se verificaram ser dela, também. O comboio que seguia em
sentido contrário foi atingido pelo projéctil, mas
não causou grandes estragos. A vítima desapareceu.
Perdeu o nome – que nunca se veio a saber, de resto! –, diluiu-se
algures nas brumas do esquecimento. Os dois estremunhados
passageiros que acordaram à má fila são agora guias turísticos, percorrem as
linhas do “Expresso do Ocidente” a contar as suas aventuras e o crime que
quase presenciaram. Os dois
passageiros que viram tudo parece
que descobriram a vocação e são agora agentes secretos, tão secretos, que não
se conseguiu saber os seus nomes. Deixaram de andar de comboio e percorrem as
estradas de Portugal atrás de espiões que andam à cata dos planos do
Poceirão. A moça, já quase
recuperada, continua no entanto de médico em médico, de relatório em relatório,
sem recuperar a memória dessas horas fatídicas e continua
sem saber o nome, morada ou número do contribuinte, se é terrorista,
vingadora ou outra coisa qualquer. A amolgadela no cocuruto degenerou para um
galo de grandes proporções, que entretanto foi emagrecendo. Em todos os
documentos da investigação, lá está: Anaquicoínes! O Ministério Público parece
não ter grandes dúvidas e aguarda os centésimos relatórios médicos para saber
o que deve fazer. Finalmente, o Inspector Fidalgo acabou mais um caso. Ficou sem perceber
quem era a moça, chegou a suspeitar que era a Nelinha e que algum dos
presentes fosse seu padrinho, mas outras investigações demonstraram essa
impossibilidade. – Fidalgo, já não és o que
eras! – pensava enquanto ia, cansado, a caminho de
Marinhais, de regresso ao lar… |
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© DANIEL FALCÃO |
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