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Autor Data 4 de Março de 2018 Secção Policiário [1387] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2018 Prova nº 2 – Parte I Publicação Público |
SMALUCO E A MORTE DE JORGE MARAVILHAS Inspector Boavida Smaluco acordou sobressaltado. Adormecera muito
tarde e ainda não eram sete horas da manhã quando o telefone tocou. Do outro
lado, ouviu, em lágrimas, o seu velho amigo Necas Baptista, considerado um
dos mais completos e originais artistas de variedades de todo o mundo, com
grande projeção internacional nos anos 1960/70, que vivia em união de facto
desde esse tempo com o radialista Jorge Maravilhas, numa altura em que a
homossexualidade era apenas tolerada e por muito poucos. A razão do
telefonema de Necas e da sua voz embargada residia na morte do seu
companheiro de vida, que sucumbira durante a madrugada a um tiro na cabeça,
sentado à secretária do escritório da casa que ambos partilhavam, desde há
muito, num bairro chique da Lisboa moderna. O velho detetive Smaluco aconselhou-o a não mexer rigorosamente em nada e
dispôs-se a satisfazer o seu pedido de ajuda, por se sentir muito abalado com
a situação e não se sentir com ânimo para tratar dos procedimentos que desde
logo se impunham. De cara e dentes lavados,
vestido com a mesma roupa da véspera, e depois de ter engolido à pressa um
café despertador, Smaluco pôs-se a caminho de casa
dos amigos, recordando mentalmente as grandes noites de glória de Necas nos
palcos de quase todo o mundo e a legião de admiradores conquistados por
Jorge, que seguiam a sua voz inconfundível nos postos emissores onde prestava
colaboração. Ambos haviam feito uma grande fortuna com as suas respetivas
carreiras profissionais, investindo parte dela nos mais diversos negócios,
desde a hotelaria à restauração, passando pelo imobiliário, invariavelmente
com grande sucesso. Nos últimos tempos, porém, com a crise financeira
desencadeada em 2007, a partir da queda do índice Dow
Jones motivada pela concessão de empréstimos hipotecários de alto risco, as
economias do casal sofreram alguns revezes ao ponto
de ambos perderem cerca de metade do que haviam acumulado. Para agravar a situação,
Necas e Jorge não haviam resistido ao vício do jogo que se tinha apoderado
irremediavelmente deles, desde há cinco anos, jogando na roleta e na banca
francesa quase tudo o que lhes restava. As discussões entre eles passaram a
ser uma constante, acusando-se mutuamente da responsabilidade pelo sucedido.
Como se não bastasse esta terrível situação, Jorge enamorou-se de um jovem
cantor em princípio de carreira, o que devastou Necas. Mas durou pouco aquele
enamoramento. A ave canora bateu as asas com um passarão da noite alfacinha,
a contas com a justiça em diversos processos que se arrastam pelos tribunais
há décadas, e anda por aí por essa europa fora a cantar para as comunidades
lusas, tendo deixado o coitado do Jorge pelas ruas da amargura. Antes, porém,
de ter sido abandonado, o antigo radialista foi vítima da falsificação de sua
assinatura em diversas dívidas contraídas e agora reclamadas. Quando chegou ao prédio dos
seus dois amigos, Smaluco encontrou Necas à porta
da rua, muito agitado, andando de um lado para o outro, correndo ao seu
encontro logo que o avistou. Um abraço comovido, com algumas lágrimas à
mistura e palavras sentidas de condolências, antecederam a entrada de ambos
no edifício e a subida até ao segundo piso. De passos rápidos, sem perderem
tempo com a espera do elevador, galgaram os degraus das escadas dois a dois,
como se fosse ainda possível salvar a vida do amigo comum, e depressa
alcançaram o escritório onde jazia Jorge. Tombado na secretária, com a cabeça
levemente caída sobre a esquerda, via-se claramente, acima da orelha direita,
uma ferida com os bordos estrelados, apesar do muito sangue que encharcara o
cabelo e escorrera até ao tampo da secretária onde o seu braço direito estava
poisado, perto de uma arma e de um sobrescrito fechado e endereçado a Necas. No chão do escritório, próximo
da secretária, brilhava uma cápsula de bala. Ao lado do corpo do infeliz
homem da rádio, estava um velhinho e imaculado gravador de cassetes, seu
companheiro de todas as horas, com o qual registava os instantâneos do
dia-a-dia que faziam as delícias dos seus ouvintes. Por instinto, Smaluco carregou na tecla “play” do gravador e logo se
fez ouvir a inconfundível voz de Jorge Maravilhas: “Desculpa-me, Necas. Tu
não merecias o que te tenho feito passar. Fui tão falso e ingrato contigo,
que não consigo suportar a dor do remorso que me consome a alma. Mais do que
a raiva de ter sido enganado por um ser vil que arruinou o que ainda restava
daquilo que construímos juntos, o que me mata é a mágoa do mal que te fiz.
Desculpa, amor”. A seguir, ouviu-se um estrondo. Smaluco
ficou tão impressionado, que desligou de imediato o gravador, ficando em
silêncio enquanto os olhos marejavam. Quando, a meio da tarde,
relatou à sua amada Natália este acontecimento, que terminou com um
telefonema para a Judiciária, onde um ex-colega e amigo se encarregou de
todos os procedimentos que terminaram com a declaração de óbito por suicídio
e a libertação do corpo para funeral, ouviu da boca desta um chorrilho de
críticas que terminaram com uma frase arrasadora: “Nunca mais tens emenda,
meu amor. Se não estivesse aqui presa, ia já contigo resolver aquilo que não
ficou bem tratado”. Em que se baseia Natália
Vaz para proceder deste modo, caríssimos leitores? |
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© DANIEL FALCÃO |
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