Autor Data 3 de Abril de 2005 Secção Policiário [716] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 7 Publicação Público |
A VINGANÇA Dic Roland Um tiro certeiro – ou não
fosse disparado pelo campeão das redondezas – liquidou abruptamente as
esperanças de Berta que, até ao fim, confiara num milagre. O seu homem, o Zé
da Púcara, hábil caçador e finalista do concurso anual da Sociedade
Recreativa de Briol, concluíra a prova com 117 pontos, em 120 possíveis. O outro finalista e sério
adversário, Chico do Anzol, iniciou a sua actuação
com algum nervosismo, logo confirmado no primeiro tiro, em que obteve apenas
nove pontos. O receio de ver fugir-lhe o título de campeão, de que tanto se
orgulhava, era bem patente no rosto contraído e no mutismo a que se remeteu.
Os tiros, porém, seguiram-se em ritmo regular e com pleno êxito, até ao
décimo. O atirador fez, então, uma
pausa maior. Um leve sorriso lhe iluminou a face; já contava 99 pontos e
ainda dispunha de duas oportunidades! Só que, ou por excesso de confiança ou
pelas “figas” ocultas de Berta, o penúltimo tiro teve novo impacto na zona
dos nove pontos! Um “Ah!…” prolongado e
triste saiu de muitas bocas, pois o Chico era o herói da grande maioria. Só
Berta desafinou; o seu “Ah!” foi de júbilo, perante a renovada perspectiva de ver o Zé da Púcara sagrar-se vencedor. Valha a verdade, não só
pela vitória do marido ela se mostrava ansiosa. Era também pelo cobiçado
prémio, que lhe fazia arregalar os olhos sempre que passava pela mercearia do
Ti Candeias: dois belos serviços, um de louça e outro de vidros, ocupando
todo o espaço da vitrina, em torno de uma taça a rebrilhar ao sol! O derradeiro tiro era,
portanto, decisivo; mas o concorrente não denunciou, desta vez, a mais leve
perturbação. Pelo contrário: com umas delongas só comparáveis às de mestre Portunhas na conhecida cena dos correios, da “Morgadinha
dos Canaviais”, o Chico do Anzol poisou a arma, puxou do lenço, limpou a
testa suada e só depois, fleumaticamente, apontou ao alvo! E foi a apoteose! Os vivas e as palmas atroaram os ares, enquanto Berta,
desiludida e furiosa, se escapava para longe… Assim terminou a tarde
desportiva, integrada nas festas do orago da freguesia. No dia seguinte,
domingo, haveria missa cantada e procissão, na parte da manhã; concerto pela
filarmónica, à tarde, no coreto da praça; e baile à noite, na Sociedade
Recreativa, com entrega do prémio ao vencedor do concurso. Mas nem tudo corria bem
naquela pacata aldeia. Em casa do Candeias o ambiente não era dos melhores.
Por muito que nos custe há que falar no caso, embora com alguma discrição.
Josefa não era – dizia-se – uma esposa exemplar. Os seus amores com o Chico
do Anzol começavam a suscitar comentários ainda imprecisos, mas insistentes.
Por outro lado, a geral simpatia de que beneficiava o rapaz (e talvez, até, a
sua auréola de campeão) pesava muito na opinião pública, com evidente
prejuízo para a mulher do Candeias. Este, por sua vez, de nada sabia… ou
fingia não saber. Quanto ao Chico – solteiro,
24 anos fogosos, bom amigo – era também exímio no difícil desporto do namoro.
E tanto assim que, tendo já um compromisso com a mais graciosa moçoila da
terra, a Luísa costureira, não desdenhava aquela secreta variante com Josefa,
mais velha dez anos! É certo que o feitio possessivo
desta última lhe criava alguns embaraços, de que já pensara libertar-se… Luísa, por sua vez, vivia
em constante sobressalto com os impertinentes assédios do primo António, que
ela não revelara ao noivo para evitar um provável confronto entre ambos. Para cúmulo das
preocupações da moça, algo aconteceu nesse dia que lhe povoou o espírito de
amargos temores: quando assistia, entusiasmada, à brilhante prova do seu
candidato, este veio pedir-lhe que lhe guardasse o casaco. Cuidadosa por
natureza, dobrou-o e colocou-o sobre o regaço; viu então cair de um dos
bolsos uma folha de papel, amarrotada e rasgada à toa, que apanhou de
imediato e onde leu, com inusitado espanto, uma estranha mensagem: ESTA NOITE
DEZ HORAS FONTE. Antes que alguém a
surpreendesse, voltou a guardar o papel no bolso, mas não mais se libertou de
uma estranha sensação de insegurança… E Josefa? Extrovertida,
graciosa e, sobretudo, muito senhora do seu nariz, vivia há tempos obcecada
pelos encantos do Chico do Anzol, cuja alcunha, ao que parece, lhe dava jus a
pescar em águas mais ou menos turvas. O ambiente doméstico foi-se
deteriorando e Candeias, ciente ou não da triste verdade, transferira a sua
paixão para o jogo da sueca, no bar da Sociedade Recreativa. Ali passava os
serões, até altas horas! Para quem vive em Briol, a
mensagem é de fácil interpretação: alguém marcou encontro na fonte, situada
próximo da estação dos comboios, a cerca de 800 metros da aldeia. A estação,
há muito desactivada, é agora uma casa em ruínas,
em zona erma só percorrida, em geral, por quem vai à fonte. Também para Luísa o bilhete
não oferece dúvidas: o seu Chico é desafiado a comparecer na fonte, a horas
que garantem uma completa privacidade… Prevendo um perigo iminente para o seu
futuro, não hesita em agir: nessa noite, envolta num xaile com que tenta
passar despercebida, vai a corta-mato para a estação, evitando a estrada e
progredindo cautelosamente. De repente, porém, uma voz
bem conhecida rasgou a escuridão: “Ora viva, priminha! Não me digas que só
conheces este caminho para a fonte!” Luísa ficou paralisada. O
medo fez-lhe perder a fala! E ainda não se voltara para enfrentar o primo e
já este a segurava fortemente com as duas mãos. “Larga-me, Tónio! Que estás
a fazer aqui?” “Isso pergunto eu, minha
querida. Sou teu primo e acho que devo proteger-te a tais horas e em lugares
como este” – respondeu, sarcástico. “Larga-me, já te disse!” – e Luísa, percebendo que não conseguia afastá-lo a bem,
tentou assustá-lo com a primeira mentira que lhe veio à cabeça. “Larga-me!
Estou à espera do Chico, que deve estar a chegar…” O ardil resultou. António não
tinha estofo para enfrentar o rival e, com uma réstia de bom senso envolta em
raivosa ironia, replicou: “Tudo bem, priminha. Que te faça bom proveito o
campeão dos tiros. Mas depois não te queixes, se ficares ferida de asa…” E
largando-a, desapareceu na noite. Refeita do susto, Luísa ia
prosseguir, quando percebeu um ruído próximo da estação. Apurou o ouvido e a
vista (o quarto crescente permitia uma reduzida visibilidade) e conseguiu
distinguir um vulto feminino a afastar-se, correndo. Um repentino pressentimento
fê-la gritar: “Josefa!” O vulto estacou. Ia
voltar-se, mas suspendeu o movimento para, de imediato, retomar a corrida. E o Chico do Anzol? Que é
feito dele, que o perdemos de vista desde a sessão de tiro ao alvo? Pois é
ele, afinal, quem permanece mais tranquilo, mais seguro do seu papel em
relação aos que o rodeiam! Continua apaixonado por Luísa e já decidiu que a
tomará por esposa muito em breve. Reconhece, com humildade, que se desviou do
caminho certo ao “descarrilar” com a azougada Josefa; mas tenta absolver-se
pelo assumido propósito de respeitar a sua prometida contra todas as
tentações que ela, candidamente, lhe desperta, sem suspeitar, na sua ingénua
pureza, que dentro dele crepita “… um
fogo que arde sem se ver, uma ferida que dói e não se sente.” O trágico, porém, é que
Luísa não sabe disso, pela simples e prosaica razão de nunca ter lido
Camões!… Aquele maldito papel foi o rastilho que fez explodir o paiol da sua
cega confiança! Depois do encontro com
António, acabou por avistar Josefa perto da estação; deduziu que Chico teria
comparecido ao encontro e que, mais cauteloso,
conseguira esquivar-se a tempo. A verdade, afinal, era bem
diferente: disposto a cortar de vez, Chico não acedeu ao convite de Josefa e
nunca mais se lembrou do papel! Josefa, escondida na
estação, interpretou à letra o grito de Luísa: “Larga-me! Estou à espera do
Chico!…”. E pensou que seria uma loucura permanecer ali, denunciando em vão o
seu comportamento… Salta à vista que qualquer
destas personagens tem razões para se vingar do Chico! Luísa julga-se traída
pelo noivo. Regressa a casa com o coração desfeito; e, por volta da
meia-noite, resolve sair de novo para ir bater à porta do “pinga amor” e
terminar de vez com o noivado. Mas faltou-lhe a coragem; seria uma nova
humilhação no mesmo dia… Josefa não suporta a
vergonha de que ia sendo vítima. Corre para casa, com o pensamento fixo em
qualquer ideia maquiavélica. O marido, como de costume, ainda não voltou da
batota e não voltará tão cedo. Berta ainda não digeriu a “sua”
derrota e recrimina o marido pelo insucesso! Para ela, é quase uma ofensa
pessoal ver o Chico receber um prémio que já considerava seu! Jura tirar
desforço contra o “inimigo”; e Zé da Púcara, atarantado, promete estudar um
plano eficaz! Saem ambos de mãos dadas e almas retorcidas, a pensar no
assunto. António, já descrente das
atenções da prima, não põe de parte um ajuste de contas com o rival, nem que
seja por ínvios caminhos. Por último, Candeias já se
convenceu das infidelidades da mulher. Precisamente – e por ironia do destino
– com o herói a quem seriam entregues os dois serviços expostos no seu
estabelecimento! Era demais!… Falta apenas um pequeno pormenor: a vingança! O escândalo estoirou cedo,
quando alguns madrugadores demandavam a igreja para os preparativos das
cerimónias. A casa dos Candeias é
fronteira ao templo, do lado oposto à igreja e dela separada pelo adro. É um
edifício de dois pisos que se ergue, isolado, entre uma vivenda ajardinada e
moderna, de um lado, e uma pequena travessa, do outro, a ligar o adro à rua
principal, onde se situa a sede da Sociedade Recreativa. A vivenda, agora
desabitada, pertence a um casal de emigrantes, ausente na Venezuela. É para a
travessa que se abre a porta de acesso ao primeiro andar da casa do merceeiro.
Todo o rés-do-chão é ocupado pelo estabelecimento, com duas portas para o
adro e, entre elas, uma larga vitrina. Pois era essa vitrina que,
naquela manhã, provocava a estupefacção e a
obrigatória paragem de todos os passantes! A enorme vidraça estava feita em
estilhaços, com arestas longas e muito afiadas. Lá dentro, na montra, sobre
um vistoso pano de veludo, os dois serviços estavam completamente reduzidos a
cacos! … Intacta, apenas a taça, brilhante e altaneira, como que a desdenhar,
na sua metálica frieza, da perecível fragilidade do barro e do vidro! No meio do caos, onde era
impossível descobrir uma única peça intacta, jaziam duas enormes pedras
estranhamente envoltas em grossas serapilheiras. A maior, dentro de metade
daquilo que fora uma bela terrina; a outra, sobre o gargalo decepado que
pertencera a uma elegante garrafa! Alguém se vingara, com
requintes de malvadez, do inocente Chico do Anzol! E este, para cúmulo do
azar, ainda sofreu uma punição acrescida quando, naquela manhã, acorreu ao
local, avisado por um amigo. Após uns minutos de muda contemplação, tentou
estender um braço até à taça, para ver se ela sofrera estragos. Não o
conseguiu, porém, sem rasgar a camisa e ferir ligeiramente o ombro direito.
Bem pode dizer-se que foi um final doloroso, a que nem faltou, sequer, uma
gota de sangue… Aqui termina esta pequena
história que, contra o que é habitual, não tem ladrões, nem assassinos, nem
polícias. Tem apenas um misterioso agente vingativo, eivado de maldade, que é
necessário descobrir, com a devida justificação. |
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© DANIEL FALCÃO |
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