Autor

Carlos Neves

 

Data

17 de Março de 1995

 

Secção

O Detective - Zona A-Team [233]

 

Competição

Torneio dos Convívios

Problema nº 2 | Convívio de Caneças

 

Publicação

Jornal de Almada

 

 

CRIME NA NORTH AVENUE

Carlos Neves

 

O meu “Rabbit” entrou derrapando na North Avenue. Com duas torcidelas no volante controlei o carro antes do sinal que, por acaso, estava vermelho.

No ar ficou o som de duas ou três buzinadelas de algum condutor que não gostou da minha apresentação à “Fitipaldi”.

No rádio um locutor qualquer de uma emissora ia “debitando” – como se toda a gente de New Jersey já o não soubesse – que a chuva daquele primeiro dia de Dezembro batera já todos os recordes de pluviosidade dos últimos dois anos e que as previsões para os próximos dias não eram optimistas quanto à melhoria do tempo. Quando estacionei defronte do número 20 da North Avenue o meu estado de espírito não era famoso. Estava ensopado, cansado, precisando urgentemente de um cigarro, e de uma boa dose de whisky.

O telefonema do “Escritório” apanhara-me quando me preparava para um fim de tarde, ameno e seco, no meu apartamento de Nova Iorque. Duas horas parado, por causa de um acidente, em plena George Washington Bridge, mais um furo, com substituição da roda debaixo da chuva torrencial, na Garden State Parkway, transformara aquela quinta-feira num perfeito dia miserável, a que se ia seguir – palpitava – uma perfeitamente execrável noite.

Desliguei o rádio e sal do carro (para a chuva, claro!) dirigindo--me para o prédio que tinha um não sei quê de sinistro, talvez devido à sua fachada de tijolos castanhos, talvez porque o anoitecer não favorecesse a sua imponência, apesar das luzes, no seu interior, estarem todas acesas e os três ou quatro carros patrulhas mais a ambulância, estacionados junto ao passeio, manterem os seus faróis ligados, dando àquela área um colorido algo surrealista.

A minha gabardina escorria água quando entrei no hall, passando pelos molhados jornalistas e mostrando a minha identificação ao guarda que controlava a entrada.

Os diferentes compartimentos tinham as portas escancaradas mas o som de vozes vinha do primeiro andar. Subi as escadas.

O pessoal habitual estava todo presente. Bill Fairy, o sheriff, com o seu eterno e enganoso sorriso, parecendo ter acabado de se vestir para a “Gala do Presidente”, o chefe Joe “BadOlden, um grandalhão com umas suíças de sargento-mor, uma quantidade de detectives, fotógrafos, peritos, guardas, três tipos desconhecidos e, junto a estes, o tenente Downey, que eu sabia ser o único com quem podia contar ali.

É que o Sheriff’s Department of Cranford não passa “cartão” a quem não pertença à “Casa” e um observador do Bail Enforcement, mesmo que superiormente autorizado como era o meu caso, é “persona non grata”.

O corpo no chão era de John “LuckySteed – reconheci-o pela fotografia do “dossier” – o grande magnata dos petróleos. Três tiros no peito acabara com aquele que era considerado – jornalisticamente – o último dos velhos “gangstersnovaiorquinos e a morte devia ter acontecido há mais de vinte e quatro horas.

Chefe de um “gang” de jovens da Bronx, sobrevivera nos anos quarenta graças a uma amante rica que lhe deixara, ao morrer, para além de uma criança que não era sua, uma cadeia de ferro-velhos, que ele transformara num império industrial durante a guerra e numa multinacional petrolífera depois daquela. O “enteado” fora criado pelo mordomo, que Steed herdara também da falecida. Amigos só lhe conheciam o sócio, antigo membro do seu bando. Steed fora julgado uma vez mas o processo fora arquivado. Era tudo quanto o relatório da “Base”, remetido por fax, dizia.

Fairy ignorou-me preferindo descer para conversar com o pessoal da imprensa (eleições a quanto obrigas), Downey piscou-me o olho e “BadOlden só esperava um sinalzito do seu superior para me pôr dali para fora. “Amores” antigos custam a esquecer, porém o sheriff, com o acto eleitoral próximo não se podia dar ao luxo de armar bronca. Sabia também que eu acabaria por obter o relatório da investigação, a bem ou a mal.

Downey puxou de um maço de cigarros e encaminhou-se para o salão do lado. Fui atrás dele porque… os meus cigarros estavam impróprios para consumo.

– Então despacharam o velho “dinossauro”! – atirei-lhe.

– Pois! – respondeu ele.

– Indícios? Pistas? Arma? Suspeitos? – perguntei de rajada.

Ele olhou por cima do meu ombro para a outra sala e eu percebi que Downey não estava interessado em sarilhos.

Tirei um cigarro do maço dele, acendi-o, dei uma “puxa” e esperei.

– Ok. A arma não foi encontrada. Indícios andam os peritos recolhendo, se é que os há. Suspeitos… o “Big Boss” tem ali três tipos. O “enteado”, o sócio e o mordomo do velho. Um dos jovens polícias, o George, disse-me que foi o mordomo porque nos livros policiais que leu o mordomo era sempre o culpado.

Olhou novamente para a outra sala, sorriu, puxou uma fumaça e continuou:

– Para mim não passa de um pobre diabo… até tem alibi. Na realidade todos eles têm alibis. O “enteado” esteve numa clínica nas três últimas semanas voltando esta manhã. Desintoxicação… álcool. O mordomo foi a casa do filho em Perth Amboy no dia 30. Esteve lá dois dias. O sócio regressou hoje do Hawaii. Passou lá uma semana… com uma actriz da Broadway. É protector de jovens promessas… desde que sejam bonitas. O “enteado” e o mordomo encontraram-se às dez da manhã e como não tinham a chave da casa telefonaram ao sócio do velho que a tinha.

Sacando-lhe um segundo cigarro pensei que talvez a noite, que aí estava, não fosse tão má como isso.

A chuva parara.

– Segundo o que ouvi por aí – disse Downey franzindo a testa – em 1975 o “enteado” accionou judicialmente Steed alegando que este lhe matara os pais e lhe roubara a herança. Como testemunhas indicou o mordomo e o sócio de Steed. O caso deu brado na altura, mas no julgamento o “rapaz” deu o dito por não dito, o mordomo compareceu pela defesa e o sócio desapareceu só voltando quando Steed foi ilibado por falta de provas. Uma enorme confusão. Porcaria de tempo – acrescentou olhando para a janela.

A chuva recomeçara a cair mas o caso já não me parecia de difícil solução.

Quando o olhar de Downey reencontrou o meu soube que também ele deduzira já quem era o criminoso.

Assim era. Algemado, entre dois polícias, lá ia ele descendo a escada…

 

Pergunta-se: quem é o criminoso e como chegou a essa conclusão?

 

GLOSSÁRIO:

Bail Enforcement: entidade não tão fictícia como pode parecer;

“Base” ou “Escritório”: a sede do Bail Enforcement;

Broadway: grande avenida de New York (Manhattan) no sentido norte/sul;

Bronx: grande e velho bairro ao norte de New York;

Garden State Parkway: Garden State = Estado Jardim = New Jersey + Parkway = grande avenida ladeada do árvores (dos dicionários); na realidade a maior auto-estrada (chega a ter 6 vias em cada sentido) do Estado de New Jersey, começando ao norte, em Peterson, e acabando no sul, em Cape May;

George Washington Bridge. Ponte George Washington, que liga o norte da cidade de New York (Bronx) ao Estado de New Jersey, sobre o rio Hudson;

Perth Amboy; localidade rural no centro de New Jersey;

Rabbit: Volkswagen Golf na versão americana;

Sheriff’s Department of Cranford: entidade fictícia só porque Cranford não é sede de comarca.

 

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO