Autor Data 6 de Fevereiro de 2005 Secção Policiário [708] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2004/2005 Prova nº 5 Publicação Público |
CRIMOCÍDIO A. Raposo “Caro Inspector
Fidalgo, saudações policiárias. Sei que a feitura de
problemas policiais é uma tarefa complexa, trabalhosa e difícil. Um bom
problema policial sai quando sai. Todos os anos, regularmente, tenho-lhe
enviado um que o amigo costuma publicar. Porém, este ano, a coisa falhou. Não
sei bem o que está a suceder, as células cinzentas não tem ajudado mesmo
nada. Para cúmulo, como sabe, a Nelinha fugiu-me de casa mais uma vez. Parece
que voltou para a enxerga de um tal capitão que você bem conhece. Já não tenho
nada a esperar da vida. A minha fase de criatividade está a passar (já
passou!). Agora, já nem consigo fazer um simples problema policial. Porém,
não desisti de pôr o seguinte estratagema em prática (nem é ideia minha, vi
numa série televisiva) e assim vou-lhe contar o que pretendo fazer: PONHO
ESTA CARTA NO CORREIO HOJE OU AMANHÃ, a seguir meto uma bala na cabeça.
Quando você a receber, fará o favor de explicar o caso na PJ; eles deverão
ficar baralhados, pensando em crime, quando afinal se trata de suicídio, para
não arranjar problemas a ninguém, muito menos à Nelinha. Apesar de estar
muito magoado com ela, não a quero presa, por crime alheio. Vou explicar-lhe como vou
fazer o suicídio e necessito o favor da sua preciosa colaboração. Na minha
casa de campo em Palmela, tenho junto à janela do meu escritório uma
macieira, frondosa, que não fica a mais de três metros da janela. Farei da
seguinte forma: ato um elástico forte ao tronco e estico até à minha secretária. Com a janela aberta, obviamente.
Disparo na têmpora e a arma vai-se embrenhar nas ervas altas que rodeiam o pé
da macieira. Ficando no meio delas, escondida. Já fiz alguns testes e parece
que resulta (é claro que não disparei a arma). Também esta ideia –
confesso – não é minha, já a li num livro policial… Assim, julgo fazer o
suicídio (crime) perfeito! Eu estarei no outro mundo, porque neste já não
faço falta, mas cumpro o meu desiderato: farei um problema policial ou, no
mínimo, forneço material para isso. Dou à Nelinha a liberdade de voar para os
braços de quem lhe aprouver e finalmente baralho a PJ durante pelo menos um
dia ou dois. Estou certo que com este tema o amigo vai publicar um problema
policial – se não se importasse, faria de mim o autor. Uma espécie de
homenagem póstuma. Desde já agradeço. Mas também preciso que o amigo vá terça
ou quarta-feira, quando receber a carta, à PJ, para com ela, limpar o nome da
Nelinha ou de qualquer outro potencial suspeito. Desculpe-me este imbróglio
e lá o espero, no outro mundo para me contar do desfecho deste caso. O seu
amigo de sempre, Detective Tempicos.» O Inspector
Fidalgo acabou de ler a carta que lhe fora enviada para o PÚBLICO e ficou
pensativo. Olhou para o relógio. Eram quatro da tarde de quarta-feira, 3 de
Novembro, já tinha lido imensa correspondência e resolveu parar. Com aquela
carta é que não estava a contar, parecia-lhe mais uma brincadeira do amigo Tempicos. Na dúvida decidiu confirmar e após um
telefonema para casa de Tempicos a que ninguém
respondeu, resolveu ir logo naquela tarde ter com um seu amigo da PJ e levar
a carta. Felizmente este não só estava de serviço,
como lhe tinha passado pela mão o caso do estranho crime. Antes de mais foi
decidido dirigirem-se a Palmela, a casa de Tempicos,
para procurar a arma do suicídio. Pelo caminho, foram trocando impressões
sobre o caso e o Inspector Fidalgo foi abastecido
de um jogo de fotocópias e fotografias da cena do crime que o deixava ao
corrente de todos os detalhes do caso. Informava-o que a arma, não fora ainda
encontrada, o que configurava “crime”. Quem encontrara o corpo
fora a mulher-a-dias que todas as segundas-feiras, mesmo nos feriados e dias
santos, ia lá a casa (tinha chave para poder entrar) e disse não ter mexido
em nada tendo telefonado imediatamente para o 112. O Inspector
Fidalgo passou os olhos pelo relatório da polícia, de novo e releu: No computador de Tempicos foi encontrada pela PJ uma mensagem enviada por
este a um amigo às 14h15 de sábado, 30 de Outubro, informando-o que o
combinado jantar de domingo teria que ser alterado para o domingo seguinte,
pois tinha-lhe surgido um compromisso inadiável. O dono da papelaria foi,
como era hábito, todos os domingos, cerca das 15 horas entregar o jornal à
casa de Tempicos. Naquele dia tocou à campainha,
ninguém atendeu e acabou por deixar o jornal na caixa do correio. Tempicos só comprava o jornal PÚBLICO por causa do
policiário. O corpo caíra na alcatifa
da sala (conforme fotos anexas) Os braços estavam caídos, ao longo do corpo,
o direito mais subido que o esquerdo. As mãos, estranhamente, tinham luvas
calçadas. A luva correspondente à mão direita apresentava resíduos de pólvora.
Porém, as faces estavam ensanguentadas, bem como a roupa, junto ao peito da
vítima. A carpete também estava ensanguentada. A bala atravessara as fontes
da vítima e alojara-se bem no centro do mecanismo do relógio de pé que ficava
do lado direito da sala, junto à parede. Os ponteiros ficaram imobilizados
às12h00. Havia impressões digitais nos estilhaços do vidro do relógio. Na segunda-feira de manhã a
empregada encontrou o corpo. Não mexera em nada. Nem tão pouco fechara a
janela. A polícia, chamada, chegou rapidamente. Nelinha – contactada
telefonicamente – dissera à polícia que tinha abandonado a casa de Tempicos após uma pequena discussão no sábado, metera-se
no seu pequeno VW mais uma malinha com roupa e abandonara-o para sempre. “Sans rancune”. Deviam ser umas
três horas da tarde. Ao sair despediu-se de Tempicos
dizendo-lhe que não tinha nada contra ele, mas agora apetecia-lhe deixá-lo,
que ele estava a perder qualidades e a ganhar defeitos, e decidia ir até casa
da avó, em Grândola. Quando saiu notou que Tempicos
estava a fechar o envelope de uma carta para o jornal PÚBLICO. Disse ainda
que tinha lá estado em casa um amigo do policiário, salvo erro Avlis que teve com ele uma discussão. Avlis
saiu antes dela. De manhã estivera ocupada a limpar o relógio de parede, um
bonito objecto antigo, mas que ainda trabalhava
lindamente. Estivera a dar óleo de cedro na base de madeira trabalhada.
Acertara-o conforme o PÚBLICO daquele dia aconselhara. Pena que o tiro lhe
tivesse, provavelmente, estragado o mecanismo. Naquele dia, até ter-se ido
embora, nem ela nem Tempicos tinham saído de casa. Avlis, que a PJ também conseguiu contactar
através de telemóvel, afirmou que saiu no seu carro da casa de Tempicos, onde estava Nelinha, por volta das 14h30.
Dirigiu-se a Lisboa, à estação da CP (Sta. Apolónia), apanhou o comboio e
nessa noite pernoitou no Porto. Ficou muito admirado por a polícia o informar
do suicídio de Tempicos. Não lhe parecia que ele
fosse homem para isso. Não lhe pareceu deprimido. E apesar da idade era ainda
um grande mulherengo. A PJ perguntou-lhe se assistiu durante o tempo que
esteve com Tempicos ao envio de um “e-mail”. Avlis confirmou. Uma coisa que o aborrecia
no Tempicos, quando lá ia a casa, era a sua mania
de ter sempre a janela aberta da sala, para respirar ar puro. Sabia que a
casa estava resguardada. Uma cerca no quintal não permitia a entrada a
intrusos. Um engenhoso processo mecânico electrificado
afastaria qualquer candidato. Discutira com ele as
classificações – e a perda de pontos que aborrecera ambos – no campeonato do
PÚBLICO-Policiário. Ambos ficavam quase sempre nos lugares cimeiros. Avlis, brincalhão costumava arreliar Tempicos
dizendo-lhe “você além de canhoto é canhestro a responder aos problemas”.
Tudo na maior. Não era caso de morte. Do cofre de Tempicos desaparecera uma valiosa colecção
de moedas de ouro antigas, que ele orgulhosamente mostrava a todos os amigos
que o visitavam. O cofre ficou aberto, vazio, mas não arrombado. Fidalgo observou ainda o
jogo de fotografias que mostravam a sala onde o corpo foi encontrado. Era um
vulgar escritório com uma única porta de entrada. Ao fundo uma janela aberta.
À direita um bonito relógio de pé, ladeado de estantes com livros que
ocupavam o resto da parede. Uma alcatifa que cobria praticamente toda a sala.
Ao lado esquerdo uma secretária tendo em cima um computador portátil. Duas
cadeiras junto à secretária. Um corpo jazia sobre a alcatifa. Ao fim da tarde, o amigo da
PJ telefonou ao Inspector Fidalgo e confirmou que a
arma encontrada fora a que disparara o tiro em Tempicos
cuja bala se cravou no relógio e à qual pertencia a cápsula encontrada junto
do corpo. Impressões digitais na arma: nenhumas. As impressões digitais nos
estilhaços de vidro do relógio eram da Nelinha. O Inspector
Fidalgo naquele dia foi para a cama cedo. Antes de adormecer tinha
solucionado o estranho caso. Os estimados confrades
decerto também poderão chegar ao mesmo resultado, bastando para tal fazer o
habitual relatório-solução. |
|
© DANIEL FALCÃO |
||
|
|