Autor Data 20 de Março de 1987 Secção O Detective [20] Competição 1ª Supertaça Policiária -
Cidade de Almada Problema nº 8 Publicação Jornal de Almada |
DOBRAM OS SINOS NA MINHA DOR Ribeiro de Carvalho Quando
entrei na casa pareceu-me estar a assistir a um espectáculo
surrealista. Por toda a parte móveis virados, louça partida, cadeiras
derrubadas como se uma festa gigantesca ou um vendaval tivesse passado por
lá. E isso poderia ser verdade se, na sala onde estava o corpo, o sangue não
se espalhasse por todo o lado, paredes, chão, eu sei lá… Isto
é uma vida dura! Todos vocês o sabem. Porém, eu nunca assistira a uma cena
como aquela. Dantesca! Impressionante! Que dizer? Tento ser objectivo, mas como se pode ser objectivo
quando de repente se nos depara algo que nunca antes tínhamos visto nem nunca
pensáramos vir a ver. Tinha
sido por volta do meio-dia que o telefone tocara. O serviço era pouco e eu
esperava pela hora do almoço. Quando atendi, senti logo que ia haver
problemas e que a fome ia continuar por mais uns tempos. O homem que me
falava, chorava, gaguejava, quase que o imaginei com
o monco a escorrer do nariz. Mas o que me disse fez-me saltar da cadeira e
correr para o carro. Estava em casa da namorada e ela estava morta, assassinada,
disse-me. Um quarto de hora depois estava junto da casa. Era uma casa
isolada, com um peque-mo, muito pequeno jardim à frente. E foi então que
entrei. Ela
estava no chão, de costas para baixo. A minha primeira reacção
foi desviar a vista. Era horrível! Só uma mente doentia, sádica, podia
conceber e cometer tal acto. O corpo estava cheio
de golpes cortantes e banhava-se numa imensa poça de sangue. Contei cinco golpes.
Um, entre o ombro e o pescoço, outro junto ao coração e os outros mais
abaixo, espalhados pelo peito e abdómen. Junto ao corpo, partido, um cordão
de prata com um sino, também em prata, réplica exacta
do modelo e de tamanho razoável. Virei-me
para o homem encolhido a um canto. Chorava, ainda, aos soluços e o monco
caía-lhe, de facto, pelo nariz. Parecia em estado do choque mas se queria
aclarar alguma coisa era imperioso fazê-lo falar. A muito custo foi-me dizendo
que tinha vindo para se encontrar com a namorada e que como a porta estava
aberta tinha entrado. Quando vira aquela cena ficara em estado de choque e só
algum tempo depois se lembrara de nos telefonar. Entrecortado de lágrimas,
soluços e ais, tudo isto demorou algum tempo a contar. Entretanto, o médico
informara-me que a morte ocorrera cm consequência dos ferimentos feitos por
um objecto cortante, provavelmente uma faca de
cozinha, entre as vinte e três horas e a meia-noite do dia anterior. Perguntei-lhe
o que tinha feito no dia anterior. Esta vida às vezes aborrece-me. Começou a
chorar ainda com mais força. É triste ver um homem chorar. Disse-me que no
dia anterior tinha havido uma pequena festa em casa da namorada. Era o dia de
anos dela e tinham estado presentes eles dois e mais dois amigos. A festa
tinha acabado por volta das dez da noite e depois tinha ido para casa. Tinha
corrido bem e todos se portaram normalmente, embora estivessem um pouco
alegres, como era natural. Ficara a ver televisão parque tinha começado na
semana anterior uma nova série sobre os emigrantes na América em que ele
estava interessado. Depois foi a «Última Sessão» mas adormecera e não a vira
toda. Estranhei que a festa tivesse acabado tão cedo mas disse-me que a
namorada estava com dor de cabeça e se queria deitar. Para
ajudar, a arma do crime não se encontrava. Resolvi ir visitar os outros
participantes da festa. Um, era o ex-namorado a quem ela tinha trocado pelo actual. Aqui estava um possível motivo para o crime,
ciúmes, inveja… Talvez a sorte, agora, começasse a sorrir. Foi esse que
visitei primeiro. Pareceu-me
ver-lhe um pequeno sobressalto quando me identifiquei mas, serenamente,
mandou-me entrar. Contei-lhe, então, de onde vinha e da cena a que assistira
e à medida que o ia fazendo a sua cara ia passando por várias fases.
Perplexidade, primeiro; horror, depois; a seguir, tristeza. Mas dominou-se. E
disse-me que, de facto, tinha estado na festa de anos. Oferecera-lhe um
frasco de perfume, enquanto que o namorado lhe dera
um quadro e o outro amigo um cordão de prata com um sino. Recordava-se
perfeitamente de como ela decidira utilizar logo as ofertas, pendurando o
cordão ao pescoço, pondo o perfume e pregando ela própria o quadro na parede.
Tinha corrido bem, a festa. Quando acabara e se tinha ido embora, enchera-se
de tristeza porque ainda gostava dela e decidira ir ter com uns amigos a uma
discoteca. Saíra por volta das três da manhã e tinha vindo deitar-se.
Perguntei o nome dos amigos, da discoteca e porque é que tinha ido para lá se
estava triste. Deu-me todos os elementos, dizendo que precisamente porque
estava triste é que pensara ir ter à discoteca para ver se se distraía. Deixei-o
e antes de fechar a pôr-ta pareceu-me ouvir um soluço. Dirigi-me
a casa do último elemento. O namorado dissera-me que, embora cego, era amigo
dela de longa data, sondo como irmãos. Quando abriram a porta, apareceu--me
uma senhora dos seus quarenta e tal anos, excessivamente pintada. Era a mãe.
O filho não estava. Tinha saído logo de manhã, não sabia para onde. Não, não
sabia a que horas é que ele tinha entrado na noite anterior, porque ela fora
a uma festa e quando regressara, por volta das duas, já o filho se encontrava
a dormir. Pedi-lhe que quando o filho chegasse o fizesse entrar em contacto
comigo rapidamente. Ela prometeu e fui-me embora. Passei
o resto da tarde a confirmar as declarações do ex-namorado. Todas batiam
certo. Estava numa situação de impasse. A arma não tinha aparecido, tinha
três suspeitos (ou nenhum?), o motivo ainda não o descobrira. Mas a prática
já me dissera que a maioria dos problemas se resolvem com muita paciência… e
uma boa dose de sorte. Quando regressei ao meu gabinete, já se encontrava à minha espera o que me faltava interrogar. Estava sentado
numa cadeira, encostado a uma bengala bastante forte. Tinha aspecto de quem estivera a chorar e quando falou, a voz,
que ao princípio era firme e segura, foi perdendo segurança até quase se não
ouvir. Pouco mais adiantou a não ser que quando saíra da festa tinha passeado
um pouco, depois tinha regressado a casa e que não tinha ideia nenhuma das
horas. Agradeci-lhe e mandei-o embora. Era
já tarde quando regressei a casa e me deitei. Este crime irritava-me,
causava-me náuseas. Tinha três suspeitos mas nenhum deles tinha motivos e
todos tinham álibi, um porque era cego, outro porque afogara as mágoas numa
discoteca e o outro porque se pusera a ver televisão. As imagens misturavam-se
em turbilhão no meu cérebro. A jovem cruelmente assassinada…
eles a divertirem-se… as prendas… uma mulher toda pintada… os sinos a
tocarem na minha cabeça… Bem aventurado
o sono… Quando
acordei estava tão em branco como quando me deitara. Além disso, doía-me a
cabeça… Estava
decidido a mais uma vez falar com todos eles. Talvez me tivesse escapado
alguma coisa… Mandei-os buscar e fiquei no gabinete à espera. |
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© DANIEL FALCÃO |
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