Autor Data 22 de Fevereiro de 2004 Secção Policiário [658] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2003/2004 Prova nº 4 Publicação Público |
Solução de: O PONTO DESAPARECIDO Nove As duas professoras que
averiguaram este caso concluíram, pelas respostas das alunas interrogadas,
nada haver contra Helena Vaz e Susana Martins, ao contrário de Leonor Hilbert, que deu claros sinais de saber mais do que
devia: 1) Leonor, depois de
declarar que esteve nos lavabos, acrescentou que não tinha ido a mais lado
algum e que não a podiam ter visto noutro sítio. Ora, a pergunta feita não
dava a entender que ela pudesse ter sido vista num local diferente dos que
porventura indicasse. Mostrou assim estar preocupada com algo de
comprometedor que, a destempo, se apressou a negar. 2) Disse, a propósito da
ajuda que as colegas lhe pediram na véspera da prova, que notou logo que elas
não estavam a ver o que ia sair em concreto. Se notou logo isso, antes de o
ponto se realizar, é porque, nessa altura, ela já conhecia o enunciado. 3) Deixou-se trair por
alguma vaidade ao afirmar, como remate das suas considerações sobre o que
saiu no teste, que em qualquer caso faria sempre o ponto todo. Este “em
qualquer caso faria sempre” significa que ela achava que responderia a tudo,
mesmo que não tivesse sabido antecipadamente o que iria sair. Um deslize que
confirmou o anterior. 4) Achou conveniente pôr-se
à disposição para ser revistada se o que estivesse em causa fosse alguma
chave desaparecida. Ora não era essa a questão. O que se pedia era a
justificação da posse de uma chave por tempo demasiado. Leonor, caindo numa
armadilha de associação de ideias, mostrou saber que, por detrás daquela
pergunta, havia uma chave que saíra do seu lugar. Estes quatro indícios
levaram as duas professoras a inclinar-se para a inesperada culpabilidade de
Leonor Hilbert. Faltava, todavia, decifrar
os bilhetes dos namorados. Debruçando-se com atenção sobre esses estranhos
textos, elas verificaram que em qualquer deles havia termos muito
significativos, tais como “cacifo”, “chave”, “cinco” e “contínuas”. E
notaram, em especial, que: A) Havia palavras que só
apareciam no primeiro e no segundo; B) Havia palavras que só
apareciam no segundo e no terceiro; C) Havia palavras que se
repetiam nos três. Em face disto depreenderam
que os bilhetes poderiam ter o seguinte formato: A + C A + B + C B + C em que “A” representava o conjunto das
palavras comuns só ao primeiro e ao segundo, “B” representava o conjunto das
palavras comuns apenas ao segundo e ao terceiro e “C” representava o conjunto
das palavras comuns aos três. Para descobrir estes
conjuntos, que se encontravam misturados, seguiram dois caminhos. Num deles começaram por
procurar “C”. Para isso sublinharam as palavras comuns ao primeiro e ao
terceiro bilhete. Obtiveram de imediato “A”, “B” e “C”, uma vez que as
palavras sublinhadas no primeiro e no terceiro correspondiam a “C”, as não
sublinhadas no primeiro correspondiam a “A” e as não sublinhadas no terceiro
correspondiam a “B”. Depois confirmaram que o segundo bilhete tinha todas as
palavras de “A”, “B” e “C” e apenas essas. Se assim não fosse, a teoria da
constituição dos bilhetes pelos três conjuntos, e só por eles, não se
confirmaria e haveria que revê-la ou procurar outra. Num segundo caminho, talvez
o menos sujeito a enganos, procuraram determinar os três conjuntos de
palavras de acordo com as seguintes subtracções: (A + B + C) – ( A + C) = B depois (B + C)
– B = C e por fim (A + C) – C = A. Para efectuar
estas operações riscaram no segundo bilhete todas as palavras que se viam no
primeiro. Obtiveram “B”. Depois riscaram no terceiro todas as palavras que
ficaram por riscar no segundo. Obtiveram “C”. Finalmente riscaram no primeiro
bilhete todas as palavras que ficaram por riscar no terceiro. Obtiveram “A”.
Um pouco trabalhoso, é verdade, mas de passos muito simples e seguros. O resultado, visto e
revisto para evitar qualquer falha, foi o seguinte: A = Beijos. porta. do meu coração. alíneas. gaveta aula ponto. seis. Gorjetas duas C.M. B = amor. Visto fechado. solta? mestra. Só. Passos? tarde. Prateleira atrás. dia
quatro? Parte. mais S. C = cacifo e chave. cinco. Esta situada na sala. das
contínuas, Os conjuntos “A e “B”, por
mais voltas que se lhes desse, não mostravam ter sentido, em completa
oposição com “C”, que evidenciava uma informação bem clara e pertinente: Cacifo e chave cinco. Esta
situada na sala das contínuas. Assim as duas docentes
concluíram que, de facto, viera do exterior a informação do número do cacifo
que guardava os pontos, bem como a do sítio onde se encontrava a respectiva chave. A larápia, conforme já haviam suposto,
teria aproveitado um intervalo para sacar a chave da sala das contínuas e um
período de funcionamento das aulas para assaltar o cacifo. Tudo isto encaixava com os
indícios revelados pela Leonor Hilbert. Ela era a
presumível ratoneira. O essencial do enigma estava desvendado. Às duas
professoras bastou então confirmar, junto da pequena do segundo ano, que a
destinatária dos bilhetes era aquela brilhante aluna de Matemática. Nota – Leonor e o namorado
usaram cada um a sua máscara de palavras para disfarçar a informação a
transmitir, com a particularidade de Leonor desconhecer a máscara do namorado
e este desconhecer a máscara de Leonor. Desta forma eles puderam
corresponder-se secretamente sem combinarem chaves de descodificação. O namorado mandou à Leonor
a mensagem “C” misturada com a sua máscara “A”. A Leonor recebeu este bilhete
“A+C” mas não o pôde decifrar porque desconhecia as palavras que constituíam
a máscara “A”. Juntou-lhe então a sua máscara de palavras “B” e enviou para o
namorado o bilhete “A+B+C”. O namorado retirou deste último as palavras da
sua máscara “A” e enviou para a Leonor “B+C”. Esta retirou a sua máscara de
palavras “B” e ficou a conhecer “C”, que era o que interessava. Engenhoso,
não é verdade? Os dois namorados
esqueceram-se, em todo o caso, que uma maninha curiosa podia copiar tudo e
que os bilhetes vistos em conjunto eram decifráveis, como o mostraram as duas
perspicazes professoras. Este processo de
comunicação foi por eles adaptado do célebre esquema de Alice e Bob, dois
namorados que só podiam comunicar entre si através de um correio
coscuvilheiro. Assim, querendo Alice mandar uma carta de amor a Bob, meteu-a
dentro de uma caixa fechada com um cadeado de que apenas ela tinha a chave. O
correio não pôde ver nada. Bob, que também não pôde ler a carta, juntou à
caixa um cadeado seu, de que só ele tinha a chave, e mandou-a fechada com os
dois cadeados para Alice. Esta retirou o cadeado que lhe pertencia e devolveu
a improvisada mala de correio a Bob, agora só com o cadeado do rapaz. Ele
então abriu a caixa e deliciou-se com a missiva da namorada. Sobre a criptografia em
geral e o esquema de Alice e Bob há muita literatura. Para leitura imediata
sugiro o artigo do prof. Nuno Crato publicado na Revista do Expresso de 22 de
Setembro de 2001 e que pode ser visto no sítio
http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato (Pessoal… ® Temas matemáticos ®
Criptografia, 2: Chaves públicas). A quem julgue inverosímil a
aventura em que a Leonor se envolveu para obter uma coisa de que não
precisava, lembro que não é raro mentes brilhantes meterem-se em complicações
que parecem incompreensíveis. Veja-se o caso de alguns “hackers”
excepcionalmente dotados que se introduzem em
sistemas informáticos de alta segurança, arriscando-se a apanhar anos de
prisão, apenas pelo prazer do desafio e não para retirar informação ou
proveitos monetários. Foi, de certo modo, o que aconteceu com a Leonor. Ela
era uma rebelde! Por ser tão boa aluna e por
ter atingido o seu objectivo sem que alguém a
visse, muito orgulhosa do seu intrépido feito, Leonor nunca pensou que a
viriam a questionar. Esse erro, que teve como consequência uma série de
deslizes durante o interrogatório, a que ainda por cima
se juntou a cópia dos bilhetes pela menina bisbilhoteira, deitou tudo a
perder. |
© DANIEL FALCÃO |
|
|
|