Autor Data Setembro de 1981 Secção Enigma Policiário [62] Competições II
Volta a Portugal em Problemas Policiais e Torneio de Homenagem a Sete de
Espadas 8ª Etapa | Porto – Espinho – Ovar – Aveiro – Viseu Publicação Passatempo [84] |
O VAI-VEM DE 300 MARIAS Marvel O
relâmpago inundou de luz cegante o decrépito casebre,
prenunciando o trovão, que veio, cúmplice, abafar o berro rouco do anoso
somítico, abatido pelas costas por violenta cacetada. –
Trezentos contos é muito dinheiro para ter à mão. – Seabra suspendeu a tomada
de apontamentos para designar com o queixo as paredes arruinadas. – Além do
que esta casa não oferece condições mínimas de segurança. –
Era lá para umas coisas, um negócio… – arquejou o velho, lágrima pronta a
saltar do olho. – A chuva não deixou que o homem viesse… e lá se foi tudo!
Mas, ò senhor guarda, o meu rico dinheiro… O
agente saiu para os chuviscos do amanhecer, nauseado com o espectáculo que prosseguia nas suas costas. O assaltante
aproveitara-se da fragilidade de uma porta das traseiras, apercebeu-se. Ao
lado, sob um beiral pronunciado, viam-se tufos de flores silvestres esmagadas
aparecendo também pegadas perfeitas produzidas por pés descomunais. Alguém
caminhara, cosido à parede, até à porta utilizada pelo ladrão. –Garanto-lhe, inspector, que enojava observar as lamentações do raio do
agiota. Ranho, baba, lágrimas, tudo ele convertia num louvor ao dinheirinho
perdido. Quase me leva a sentir uma certa simpatia pelo gatuno. – Um raio de
sol entrava pela janela do gabinete da Judiciária. Fazia, até, um certo
calor. – Mas, sinceramente, não sei por que ponta pegue neste caso. Empurram,
e olhe que empurram é bem o termo, uma porta, dão uma paulada num velhote e
raspam-se com 300 contos ali pousados de feição. Simplicidade desesperante.
Pistas, indícios… nada! –
Resumamos os dados – propôs o inspector,
entrelaçando os dedos. – Ontem de manhã, o velho em questão recebeu em
determinado cartório a importância de 300 contos, produto dum legado de
falecido parente. O facto, aparentemente, era do domínio público, dado certas
confidências, ditadas pela euforia, proferidas em tempo oportuno. Deambulando
pela cidade, regressou a casa ao entardecer, levando consigo o dinheiro,
facto contrário ao seu modo de ser usual. Razão evocada um negócio previsto
para essa noite, de índole secreta e dos que só se realizam com dinheiro à
vista. –
E sobre cuja legalidade se podem fazer variadas conjecturas. –
Porque a tempestade fez adiar o negócio, temos que o nosso homem se viu na
contingência de passar a noite com o dinheiro, praticamente sem meios de protecção. Assaltado, agredido, roubado! – Pausa. – Mas
sim, você tem um óptimo começo, Seabra. –
Acha? –
Ele passou o dia fora de casa, grande parte dele, com o dinheiro no bolso.
Que fez, aonde foi, com quem falou? Está a ver? Reconstitua-lhe os passos! Era
novo ainda, traído, embora, por uma calvície extemporânea, o empregado que
servira a bica e o meio bagaço matinais, na véspera, ao velho avarento. –
Ele esteve aqui cedo. De ar torvo e desconfiado. Ao servi-lo, falei na
«massa». Perguntei-lhe a quanto iria a sua conta bancária ao fim da tarde.
Chamou-me, badameco. Intrometido… que sei eu? Ná,
no seu normal não estava, não senhor, se bem que o seu normal… Era
um cubículo acanhado, de somente duas cadeiras, aonde se vai porque ao fim de
vinte anos falece a coragem de quebrar a rotina. –
Olhe que é boa peça, o homem, meu amigo. – A navalha corria a cara do agente
com a leveza da prática que o artritismo ainda não perturbara. – Tem lá
aquela mania do dinheiro, e depois? Há bem pior a cada esquina. Por acaso, ontem
estava pouco falador. Quis meter chalaça dizendo-lhe que dali a umas horas o
banco teria de arranjar uma divisão nova só para o dinheiro dele, e ouvi-lhas
tortas. – As paredes, pejadas de espelhos, mostravam os passos do
homenzarrão. Seabra reparou que as bainhas das calças desapareciam numas
botas felpudas adequadas ao Inverno. – Não estava nos seus dias, não senhor.
Talvez a emoção de ir receber aquela maquia… Não
parecia nada um advogado. Jovem, muito louro, camisa de mangas arregaçadas,
daria melhor estampa de jornalista. –
É um velho enigmático, sem dúvida. Pediu-me para ter pronto, ontem, o
dinheiro em boas notas de mil, ele que tem pavor a transportar valores
consigo. Penso que desejaria sentir, uma vez que fosse, a sensação de apertar
tanto dinheiro. É que o seu tipo de avareza foge ao padrão comum. Em vez de
delirar com o toque do ouro, vibra com a conjunção dos números. É capaz de
perder horas com as mais inverosímeis operações que lhe proporciona ou poderá
proporcionar a fortuna que tem a render. Quando me propus para o acompanhar
ao banco, opôs uma recusa algo seca. Na
tasca, encontrou um exemplar que nunca se terá conformado com o facto de não
ter conseguido o lugar de coveiro na terra natal. –
Esse também lá andava com os seus vinagres, lá isso… Veja que perguntei ao
estupor do Velho se já tinha metido a «massa» lá no banco, assim na melhor
das intenções, que essa gatunagem… Pois só lhe digo que o gajo
me manda às fuças que se eu estava à espera de que ele a tivesse ali para lha
palmar bem podia ir-me matar! Tamanho desaforo! Claro que tive de mandá-lo à
pata que o pôs. No
mesmo café da manhã, tomaram o galão e a torrada que se suspeitava constituir
o seu jantar habitual. –
Vinha que nem lhe digo, nunca o vi assim. Já o Nelson, que o serviu de manhã,
me dera a sacar das trombas com que ele andava. Como se motivo houvesse!
Mamar sem bulir 300 Marias, um «harém» que só nas Arábias! Tristezas dessas
não são cá com o filho do meu pai, é o caraças! Mas
vá que sempre dei a minha ferroada: «Ó tio, conte
aqui ao seu sobrinho afeiçoado quanto é que tem agora no Borges.» Havia de
ver e ouvir! De tudo quanto disse e fez, nada confirmava o parentesco. O
sol já não entrava no gabinete da Judiciária. Realmente, sumira-se num
lusco-fusco prematuro. –
Eu bem lhe dizia que tínhamos um começo prometedor entre as mãos. Claro que
faltam as provas, que virão, estou certo, se malharmos o ferro enquanto em
brasa. Olhe, procure ……… e traga-mo cá. PERGUNTA-SE: Quem
vai comparecer perante o inspector? E não se
esqueça de basear a sua resposta! |
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© DANIEL FALCÃO |
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