Autores

Inspector João

 

Data

15 de Abril de 2022

 

Secção

Correio Policial [550]

 

Publicação

Correio do Ribatejo

 

 

A CHAVE PERDIDA

Inspector João

 

Na verdade, senhor Inspector, não sei como isto poderia ter acontecido.

Mas então, D. Hermínia, estas coisas desenrolam-se de uma maneira espantosa – disse o Inspector. – Para melhor coordenar a minha investigação e ainda porque podia muito bem ter omitido qualquer facto esquecido na ocasião em que esteve a narrar-me o que se passou esta noite, eu queria que V. Exa. tornasse a contar-me tudo, mas completamente tudo o que me possa ser útil, para a captura do criminoso.

D. Hermínia, com um suspiro e enxugando mais uma lágrima com o seu lencinho rendado, começou:

“Nós viemos, eu e o Guilherme – Gui, como eu familiarmente lhe chamo – para Colares, há aproximadamente dois anos. Morávamos em Lisboa e o Gui foi colocado cá como tesoureiro da delegação da empresa, cuja sede é na capital. Há cerca de seis meses a minha mãe veio cá passar uns dias, e o Gui achou melhor que ela ficasse, porque o Inverno se aproximava e eu aborrecia-me imenso passar sozinha em casa, os intermináveis dias. Coitada, se ela tivesse adivinhado, não aceitaria a proposta, pois tem em Lisboa muito que fazer em duas ourivesarias de que é proprietária, resolvendo ela mesmo todos os assuntos, até os mais fúteis.

Minha mãe ficou depois de solucionar certos problemas da casa, mas com a promessa de voltar no fim do Inverno. Se bem que o Gui não se desse lá multo bem com ela, enfim, pequenas questiúnculas, que nada valem, os dias iam passando maravilhosamente, e minha mãe parecia gozar de esplêndida saúde, nesta várzea húmida de Colares.

Todas as noites saíamos, eu e o Gui, a um “café” aqui próximo, e minha mãe ficava quase sempre deitada, como esta noite. Raramente nos acompanhava. E, até aqui, nada de anormal. Há bocado, cerca das vinte e uma horas, saímos de casa. Minha mãe, como disse, ficou deitada. Meu marido fechou a porta, deu duas voltas à fechadura, como era costume, porque minha mãe receava ser incomodada pelos gatunos, que, apesar de a região ser pacata, existiam na sua imaginação. Desculpava-se que tinha um sono muito leve e qualquer coisa a incomodava.

O Gui entregou-me as chaves. Nós só temos uma chave cá de cima e outra da porta de entrada, pois meu marido, logo no primeiro dia que cá viemos, perdeu as dele. Tenho-lhe dito várias vezes para mandar fazer outras, mas nunca mais tornámos a ir a Lisboa. Ele ficou farto da vida alfacinha e não há quem o arranque do quintal, ora tratando dos morangos, ora das flores, nas horas de descanso. Como tenho receio de perder a única que existe ou de me esquecer dela em casa, depois de fechar a porta no trinco, anda sempre comigo. Meu marido dá-ma sempre a guardar depois de se utilizar delas.

Descemos a escada e, mais uma vez, dirigimo-nos ao “café” do costume, onde se reuniam todas as noites perto de uma centena de pessoas, e que ficava a dois minutos, mais ou menos, da nossa casa. Ocupávamos sempre qualquer mesa que estivesse vaga. Não tínhamos lugar preferido. Meu marido apenas gostava de ficar na periferia e o mais isolado possível, por termos ambos um espírito, vá lá, um bocadinho crítico…”

Hermínia suspirou, limpou outra lágrima rebelde e continuou:

“Pelas vinte e uma e trinta, pouco mais ou menos, chegou a minha amiga Milú, que me veio cumprimentar e convidar a ir ver uma colcha nova que tinha comprado para a sua cama. Seu marido tinha ficado retido no liei-to, com uma constipação um bocado renitente e ela não se podia demorar. Viera ali só para matar o vício…

Pedi a meu marido para me acompanhar, mas ele esquivou-se, dizendo que estas coisas eram para as senhoras. Pediu-me que cumprimentasse o senhor Crispim, em seu nome, e lhe manifestasse o desejo de rápidas melhoras. Eu prometi que não me demorava e parti com a minha amiga.

Meia hora depois, voltei. O Gui ainda lá estava. Criticámos um pouco mais a maneira de vestir de certas pessoas, pois era quase que o nosso entretenimento e saímos do “café”. Pouco depois estávamos à porta. Subimos ao segundo andar, dei as chaves ao meu marido, que estavam ainda na minha blusa de malha, por baixo do casaco. Dando duas voltas à chave, abriu a porta. Depois… eu nem me quero lembrar do que vi. Nunca mais me esquecerei durante toda a minha vida. Minha mãe, deitada aqui no corredor, a boca desmedidamente aberta, arroxeada… Que triste visão. Tal qual o Senhor Inspector a viu, pois nem eu nem o Gui tivemos coragem para lhe tocar. Telefonámos para a Polícia… e eis tudo o que sei”.

– E o senhor Guilherme, tem alguma coisa a adicionar às declarações de sua esposa?

– Não, senhor Inspector. Nada mais. As coisas passaram-se precisamente como ela as narrou.

– Os senhores não notaram no “café” qualquer pessoa estranha, isto é, qualquer pessoa que não tivesse o hábito de ir ali?

– Hum!? Não – respondeu Gui, depois de pensar um momento. – Não notei.

– E o senhor esteve sempre no “café” enquanto sua esposa se demorou em casa de D. Milú?

– Bem, quer perguntar se estive sempre sentado à mesa?

– Precisamente – respondeu o Inspector.

– Como a noite estava agradável e me começava a aborrecer, levantei-me e vim até à porta, onde estive encostado, do lado de fora, durante, talvez, uns dez minutos, mas tornei para dentro, porque me ressenti um bocado da diferença de temperatura. O tempo suficiente para fumar um cigarro.

Nogueira passou uma revista minuciosa por todas as janelas da casa, não encontrando vestígio algum de arrombamento. No 2º andar onde o casal morava, não havia possibilidades de alguém lá chegar e mesmo a velhota, medrosa como era, não abriria a janela a ninguém. Os vizinhos tinham declarado que não notaram qualquer rumor, nem ninguém subindo a escada.

A porta de entrada, notara o Inspector, tinha a fechadura avariada havia já quinze dias, segundo o informaram, apesar do senhorio, por duas vezes, a ter mandado arranjar. Tornou ao segundo andar e, enquanto subia as escadas, lentamente, ia pensando que, em presença dos dados que tinha, o criminoso não podia ter entrado senão pela porta. Mas, como? Bem fechada à chave. A D. Sofia, medrosa, não abria a porta a ninguém e, mesmo que a quisesse abrir, não podia, porque a única chave que existia tinha a D. Hermínia bem guardada, por sinal na “blusa que estava por baixo do casaco”.

Era ela a única possuidora desse objecto do qual nunca se separava, a não ser para dar ao marido. Mas ele dá-lhe logo depois de fechar a porta. Está complicado… Se a casa fosse antiga, diria que havia ali alçapões, portas falsas, etc., mas o edifício é de construção recente… ESPERA!!! Já estou a ver tudo – exclamou o Inspector, com um sorriso. Caramba, tão claro, tão simples, mas tão bem engendrado!

Bateu à porta. D. Hermínia abriu-lha, acompanhado do Gui. O Inspector não entrou. Da porta, com um leve sorriso nos lábios, disse: – Senhor Guilherme, faz favor de me acompanhar.

– Porquê? – perguntou Gui, bastante admirado.

– Por uma questão de protocolo, não se assuste. Vamos tirar as suas impressões digitais na esquadra de Sintra. Sua esposa irá depois. Tenha paciência, tem de ser.

Claro que não havia impressões digitais a tirar. Uma vez ali chegados, depois duma viagem em que se conversou de vários assuntos, o Inspector mandou chamar o Chefe e disse-lhe:

“Senhor Mendes, entrego-lhe o senhor Guilherme de Azevedo, que esta noite assassinou a sua sogra, num prédio em Colares”.

 

Pergunta-se:

– Em que se baseou o Inspector para fazer tal afirmação?

– Acha que Guilherme foi o assassino?

– Se tem outra hipótese, apresente-a… mas justificada!

 

SOLUÇÃO

© DANIEL FALCÃO