Autor

Elima

 

Data

2 de Outubro de 1960

 

Secção

Na Pista do Culpado [62]

 

Competição

Torneio "O Produtor"

Problema nº 8

 

Publicação

Ordem Nova

 

 

NUMA CASA DE DOIDOS

Elima

 

O mordomo Gustavo acabara de tomar uma resolução fundamental. Sucessor digno do porte saxão, jurara diante da cama – símbolo da rectidão do corpo – assassinar o seu patrão, o meu grande e nobre Espias Torradas. Para além do acto meramente físico, estava a dedicação a uma classe merecedora dos mais rasgados elogios policiais.

E o mordomo traçou o plano. «Por cima do melão, vinho de tostão». Desse modo injectaria no patrão uma boa dose de água, após a sobremesa, causando-lhe uma indigestão fatal, pois, a seu ver, “monsieur” Espias Torradas era alérgico a indigestões.  

Passando à realidade os factos previamente combinados, numa bela tarde avançou para a sala de jantar munido de água suficiente, e, qual o seu espanto, viu que alguém se havia adiantado ao serviço. O corpo torrado de Espias Torradas, estava caído de borco, sobre a mesa, em gesto de adoração hindú. Chamados todos os santos possíveis e imaginários, espumando de raiva, atirou-se ao trabalho de descobrir o traidor que se lhe adiantara, impedindo-o de receber o Grão Diploma de Mordomo.

 

O jardineiro Anacleto entrou de rompante na cozinha, com ares infinitamente chocantes, e num desabafar rápido, gritou:

– Quero saber quem foi o grande bruto que teve a pouca vergonha de deitar uma pistola para o meio da roseira, estragando um ramo! Quem foi? – E esticou os dentes.

O mordomo-frustrado adiantou-se e apaziguou os ânimos.

– O patrão morreu! Foi morto com um tiro nas costas!... E eu juro que vingarei Espias Torradas…

– Não me interessa. Quem estragou as… o quê? O patrão morreu? E agora quem me paga? Deve-me dois meses… Dois… - Levantou dois dedos para dramatizar mais o caso.

– E tocaste na pistola?

– Não – grunhiu virando as costas.

Gustavo levantou-se e correu ao jardim. Com um lenço retirou a pistola e cuidadosamente pôs-se a estudar o cabo de chumbo. Depois guardou-a no bolso, numa ânsia crescente de se vingar do “ladrão” do seu Grão Diploma.

         

À noite, na cozinha, o jardineiro e a senhora Ana, cozinheira e mãe de Manuel, secretário da vítima, conversavam num tom “à defuntos”. O jardineiro, sentado no chão, torcia os lábios, enquanto a senhora Ana perguntava:

– Já chamaram a polícia?

– Não – respondeu Anacleto.

– Então o cadáver ainda está na sala de jantar?

– E está muito bem – resmungou ele. – Sabe uma coisa, senhora Ana? Lembra-se do Gustavo ter dito ao jantar que já sabia quem era o ladrão?

– Lembro, porquê?

– Eu, à tardinha fui ao jardim, e reparei que no cabo da pistola estavam as impressões digitais do seu filho…

– Meu filho? Não pode ser, ouviu?  

– Deixe-me continuar… - baixou a voz. – Ora eu, no seu caso, matava Gustavo, porque ele jurou vingar o patrão. Compreende, sempre é seu filho… - E sorriu.

– Mas você mente – gritou a senhora Ana.

– Juro – proferiu solenemente o jardineiro. – Bem, depois faria desaparecer a pistola, para sempre.

E a senhora Ana começou a preparar o crime, na ânsia de salvar o seu filho das garras do mordomo.

No dia seguinte, mais um cadáver «acordou na quieta melancolia» lá em casa. Era Gustavo, que no último momento ainda conseguira colocar no peito o Medalhão de cortiça da Ordem dos Mordomos.

A senhora Ana passara o resto da noite na cozinha, sem dormir. A expressão nervosa modificava-lhe totalmente a face angélica, e quando o jardineiro entrou…

– Ah, seu canalha! Vi tudo. Eu…

E atirou-se-lhe ao pescoço. O Anacleto, num gesto rápido, esquivou-se estatelando a senhora no chão. Depois, foi só deixar cair a faca… Terceira vítima! Mas, por ironia do Destino, em má hora o fez, já que nesse momento entrava Manuel, que, vendo o terrível acto, se atirou ao assassino de sua mãe.

A luta foi enorme. A cozinha rodo piou, sofrendo perdas incalculáveis, mas mais uma vez Anacleto venceu. Merecia já o Medalhão da Mortandade, oferta da Sociedade dos Jardineiros, mas resolveu não o reclamar. Pelo contrário optou pela fuga daquela terrível casa, já que a polícia não o pouparia, visto ser o único sobrevivente. Fugiu para a rua. Contudo, dessa vez foi impotente para segurar o choque. Um automóvel avançou e colheu-o mortalmente. Pobre homem!

E a história acaba aqui, pois não há mais pessoas a matar.

           

Afinal que queríamos nós? Ah! O leitor, feliz sobrevivente, irá fazer o seu relatório, expondo o nome da pessoa responsável pela morte de Espias Torradas, as devidas razões e explicando também o modo completo como actuou a dita pessoa.

 

 SOLUÇÃO (não disponível)

© DANIEL FALCÃO