Autor

Bernie Leceiro

 

Data

1 de Dezembro de 2022

 

Secção

O Desafio dos Enigmas [154]

 

Competição

Torneio "Solução à Vista!" – 2022

Prova nº 4

 

Publicação

Audiência GP Grande Porto

 

 

Solução de:

FADO DO LADRÃO ENAMORADO

Bernie Leceiro

 

“Nunca fui grande ladrão / Nunca dei golpe perfeito / Acho que foi a paixão / Que me aguçou o jeito”, assim canta Rui Veloso a letra de Carlos Tê no seu “Fado do Ladrão Enamorado”, o que poderia ser o epilogo perfeito para o depoimento do autor do roubo à ourivesaria da rua da Paz, mais não é do que parte da música que deu o mote e o enredo para a escrita deste enigma policiário fazendo a ligação a um personagem enigmático cantada por outro autor que muito admiro. 

Há músicas que conquistam a nossa empatia pela mensagem que transmitem, outras conquistam-nos pela beleza do seu instrumental, há ainda aquelas com as quais nos identificamos por falarem de determinado estado de espírito ou ponto de vista que partilhamos. No entanto, existem outras músicas, com que simpatizamos, não por nenhum dos motivos nomeados atrás, mas porque gostamos, sem saber bem porquê, dos personagens por elas trazidos e pela simbiose que eles criam com o instrumental que lhes serve de base. 

No mundo da ficção, sempre nutri uma especial empatia por aqueles criminosos e larápios que nos eram apresentados de uma forma quase poética pelos seus criadores. Como se a forma quase lírica com que eles nos eram apresentados nos fizesse gostar deles, mesmo que não aprovássemos o que eles faziam. Jeremias, o fora-da-lei de Jorge Palma, é um desses personagens. O produtor de bombas caseiras que as considerava eloquentes e que, ao contrário da maioria dos criminosos, não se sentia vítima da sociedade. Aquele que se vestia de negro, que gostava do quente da aguardente e da forma como os homens se engasgavam quando pronunciavam o seu nome. Jeremias ganha a nossa simpatia no imediato. Não pelo que representa, mas, uma vez mais, pela forma original como foi criado e pela criatividade com que nos foi apresentado. Eu gosto destes foras da lei, aqueles que só existem nos filmes e nas músicas. 

Do álbum O Lado errado da Noite de 1985, Jorge Palma canta assim (a negrito, as evidências do problema): 

“Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei 

Descendente por linhas travessas do famigerado Zé do Telhado 

Jeremias dedicou-se desde tenra idade ao fabrico da bomba caseira 

Cuja eloquência sempre o deixou maravilhado 

Para Jeremias nada se assemelha à magia da dinamite 

A não ser talvez o rugir apaixonado das mais profundas entranhas da terra 

Só quando as fachadas dos edifícios públicos explodirem numa gargalhada 

Será realmente pública a lei que as leis encerram 

Há quem veja em Jeremias apenas mais uma vítima da sociedade 

Muito embora ele tenha a esse respeito uma opinião bem particular 

É que enquanto o criminoso tem uma certa tendência natural p’ra ser vitimado 

Jeremias nunca encontrou razões p’ra se culpar 

Porque nunca foi a ambição nem a vingança que o levou a desprezar a lei 

E jamais lhe passou pela cabeça tentar alterar a constituição 

Como um poeta ele desarranja o pesadelo p’ra lá dos limites legais 

Foragido por amor ao que é belo e por vocação 

Jeremias gosta do guarda roupa negro e dos mitos do fora-da-lei 

Gosta do calor da aguardente e de se seguir remando contra a maré 

Gosta da maneira como os homens respeitáveis se engasgam quando falam dele 

E da forma como as mulheres murmuram: o fora-da-lei 

Gosta de tesouros e mapas sobretudo daqueles que o tempo mais maltratou 

Gosta de brincar com o destino e nem o próprio inferno o apavora 

Não estando disposto a esperar que a humanidade venha alguma vez a ser melhor 

Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora” 

© DANIEL FALCÃO