Autor Data 15 de Fevereiro de 2004 Secção Policiário [657] Competição Campeonato Nacional e Taça de
Portugal – 2003/2004 Prova nº 3 Publicação Público |
Solução de: A MORTE DANÇA O BOLERO A. Raposo Nota prévia: este problema
foi-me inspirado numa notícia que li sobre um caso sucedido há uns anos no
Vaticano, entre a guarda suíça, e que a revista “Pública” de 12-10-03
retratou… “Tornay foi encontrado morto, de barriga
para baixo, com a pistola debaixo do corpo depois de alegadamente se ter
suicidado com um tiro na boca. Uma posição insólita, já que quando um homem
dispara um tiro na boca, quando o corpo cai por terra, cai de costas! A menos
que tivessem imobilizado o corpo e depois disparado.” A partir desta ideia-base
construí o problema aproveitando para lhe juntar uns ingredientes para
baralhar os solucionistas… Naquela vivenda, onde se
passa a acção, temos em simultâneo: 1 – O capitão Magalhães na
biblioteca, no 1º andar, preparando-se para tocar na sua aparelhagem um CD,
com a gravação do célebre Bolero, de Ravel; 2 – No rés-do-chão e ao
fundo da casa a cozinheira a tratar das panelas; 3 – No 2º andar e sobre a
biblioteca o sobrinho mais novo a navegar na Net; 4 – Na cave o sobrinho mais
velho a carpinteirar com uma lixadora eléctrica; 5 – No jardim, no exterior,
o jardineiro a tratar das flores, mas sob a janela da biblioteca, a qual
sempre ficou semiaberta, ou melhor, semifechada, para quem prefira. A peça musical de Ravel tem
uma particularidade: tem a duração de 16 minutos, alguns segundos mais, mas
para chegar a ouvir-se a um nível que chegue às outras divisões da casa
precisa de uns dez minutos, pois o som vai sempre em crescendo. A partir dos
12/14 minutos o ruído sonoro já será susceptível de
chegar à cave. No entanto, sabemos que o tiro foi ouvido pelo melómano
jardineiro 15 minutos após o início do disco, altura onde entram os pratos
(címbalos). O sobrinho mais novo não se apercebeu do tiro, só a criada notou
um barulho esquisito, mas não conseguiu decifrar. Todos eles ouviram o disco
a tocar, sinal que a música estaria suficientemente alta. Porém, o sobrinho,
da cave não se poderia aperceber do início da música visto que ela só começa
forte após uns dez minutos. Estando na cave a utilizar uma lixadora eléctrica, teria muita dificuldade em ouvir a música e
muito menos o tiro e o ruído de um corpo a cair – a carpete espessa e dois
andares abaixo não deixariam. Sendo o sobrinho mais velho
o único que entra na biblioteca após a morte do capitão e que sai fechando à
chave a porta, então precisamos de lhe atribuir também alguns outros dados
que o morto não poderia executar: 1 – Tirar o disco do
aparelho e colocá-lo junto à caixa sobre o gira-discos; 2 – A cápsula da bala não
poderia ter escorregado (rolando), dado que a carpete é espessa e faria a
travagem necessária; 3 – E por fim, tal como no
caso do Vaticano, um indivíduo em pé, ao dar um tiro na boca, cai para trás e
não fica com a arma sob o corpo, a menos que alguém o agarre. O tiro foi dado
com a vítima de pé, como o comprova a bala incrustada na parede a um metro e
oitenta do chão. O normal seria, a haver suicídio, que o capitão disparasse
sentado. Resumindo: neste caso conclui-se facilmente que o capitão foi morto
e não se suicidou, e o assassino só poderia ser o seu sobrinho mais velho. Quanto à herança, sucede
também um caso interessante. De acordo com o Código Civil (artigo 2166º), é
possível deserdar um filho da parte “legítima” a que teria direito desde que
se declare expressamente essa vontade e que se enquadre na especificidade da
alínea a) daquele artigo do código. Foi o que fez o capitão. Porém, decidiu
atribuir a totalidade da sua herança ao seu algoz. O mesmo código, no artigo
2034º, inibe aquele de ser herdeiro, provado o crime. Portanto, segue a
herança, na totalidade – a casa –, para o sobrinho mais novo! O móbil do crime: o
sobrinho mais velho quis abreviar o recebimento da herança, eliminando o tio.
Sabia que tinha o testamento a seu favor. E, como bónus, a parte da
“legítima” que não se pode deixar de dar a um filho, excepto
naquele caso previsto no Código Civil. O capitão não perdoou ao filho e
deserdou-o completamente. Como se teria passado o
caso: o sobrinho mais velho apercebeu-se de que o tio iria ouvir música e
aproveitou-se do facto. Esperou até a música subir de tom o suficiente e, de
posse da pistola do tio, que ele saberia onde encontrar e que estaria
operacional, entrou na sala. O tio levantou-se do sofá
ao ver o sobrinho com a sua pistola. Este susteve-o com um braço e com o
outro enfiou-lhe a pistola na boca, disparando. O corpo caiu assim de bruços.
Entretanto deve ter dado sem querer um pontapé na cápsula, que a fez rolar
para debaixo do sofá. A seguir fez uma burrice: foi tirar o disco do aparelho
e colocá-lo junto à caixa vazia. Os assassinos fazem sempre uma asneira para
facilitar aos investigadores… |
© DANIEL FALCÃO |
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